A jovem que se infiltra dentro das redes dos grupos de extrema direita na Europa

by @prflavionunes

No maior festival de música neonazista da Europa, chamado Schild & Schwert (Escudo & Espada), que acontece na fronteira entre a Alemanha e a Polônia, usar o calçado errado pode representar um problema muito sério. Esperando na fila para entrar, Julia Ebner, uma investigadora especializada em se infiltrar em grupos radicais, olhou para seus pés e percebeu que era a única sem o logotipo N da New Balance, uma marca de tênis norte-americana cujo dono apoiou Donald Trump em 2016 e que, desde então, tornou-se o calçado preferido dos extremistas de direita de meio mundo – com direito a todo o tipo de lendas urbanas, completamente alheias à empresa. Ela estava usando Adidas branco. Felizmente, ninguém reparou neles.

O trabalho de Ebner requer não só coragem e paciência, necessária para para escutar durante um fim de semana bandas como Burning Hate, Painful Life e Terrorsphära, com suas letras delirantes dedicadas à luta do povo ariano pela sobrevivência. Também é necessário um profundo conhecimento de códigos sutis compartilhados por grupos radicais em todo o mundo, sejam da extrema direita ou jihadistas. Uma palavra, um sapato, até mesmo um gesto pode denunciar o estranho e destruir toda a operação. Ou pior. Em seu primeiro livro, Going Dark: The Secret Social Lives of Extremists, Julia Ebner relata essa aventura do outro lado do espelho do radicalismo. O livro, que inclui no prólogo o partido espanhol Vox como membro dessa galáxia conspiratória e paranoica, narra vários anos de monitoramento desses grupos, dentro e fora da rede, um período em que os ultradireitistas e neonazistas de todos os tipos cresceram em número de apoiadores e periculosidade.

“Passo muitas horas monitorando seus canais, estudando que tipo de códigos e linguagem eles usam e a maneira como se comunicam”, explica Ebner (nascida em Viena, em 1991), falando de Londres por videoconferência. “Aquele festival neonazista é um exemplo muito claro, porque eles compartilham códigos culturais bem estabelecidos, que dizem respeito não só à maneira de se vestir, mas também à música de que gostam, os hobbies. Eles veem os mesmos vídeos do YouTube. Os tênis eram um exemplo, mas eu também sabia que precisava citar certos livros e filmes e não mencionar outros que eles consideram que fazem parte da conspiração de Hollywood para controlar o mundo. É muito importante que as forças de segurança venham a controlar essas linguagens e compreender os sinais de que pode ocorrer um ataque, de que algo é realmente perigoso.”

Quase sempre pela Internet ― embora outras vezes ao vivo, como naquele festival neonazista na Alemanha ―, a profissão de Ebner consiste em monitorar para o Instituto para o Diálogo Estratégico, com sede em Londres, todo tipo de grupos radicais, e esquadrinhar seus chats e suas páginas na Internet sem ser detectada, para escrever relatórios e também alertar governos e instituições internacionais sobre o que está sendo tramado ali.

No início, ela se concentrava principalmente nos jihadistas, mas seu trabalho se voltou para grupos de extrema direita, cada vez mais ativos e ameaçadores, que são o foco de seu livro. Os massacres em Utoya (Noruega) em 2011 e Christchurch (Nova Zelândia) em 2019 demonstraram que os assassinos usavam a mesma linguagem, os mesmos mitos e delírios antissemitas e islamofóbicos, como a teoria da grande substituição, que as pessoas que se envolvem no movimento mas que nunca recorreriam à violência física.

Essa é precisamente a parte mais difícil de suas investigações: distinguir um fanfarrão asqueroso de um possível terrorista. “Nem sempre é fácil separar o trolling do possível terrorismo, o que representa algo como um jogo da ideologia extremista que pode levar ao terrorismo ou a incitação à violência”, observa Ebner. “A alt-right (a extrema direita dos EUA) se especializou em esconder perigosas campanhas de radicalização por trás do que parecem ser piadas quase inocentes. É preciso entender as pequenas nuances.

O mesmo aconteceu no caso do Estado Islâmico, e também quando a Al Qaeda começou a atacar: os serviços de segurança passaram a entender a linguagem dos jihadistas, a entender quando a ameaça era grave. Descobrir, por exemplo, quais citações do Alcorão indicavam um possível uso da violência. O mesmo tem que ser feito com a alt- right. E esse perigo só começou a ser levado a sério depois dos ataques em Christchurch, em El Paso e Halle.

No livro de Ebner aparecem conversas em chats com pessoas obcecadas em confinar as mulheres em papéis tradicionais, obcecadas com o perigo representado pelo feminismo (um dos muitos pontos em que os islamistas radicais e os de extrema direita concordam), com a suposta conspiração judaica mundial, com os direitos LGTBI ou com a já citada “grande substituição”, que Ebner define como “uma ideia que surgiu na França e que sustenta que as populações brancas estão sendo substituídas por imigrantes”.

“Um dos maiores perigos é que se trata de uma teoria da conspiração que assume que existe uma ameaça existencial contra a população ocidental e que é iminente”, acrescenta. O outro perigo dessas teorias é que muitas vezes são citadas por fanáticos perigosos, mas também por partidos políticos com representação parlamentar – como o Vox, Governos como os da Hungria e Polônia e o presidente dos EUA, Donald Trump. “Eu diria que algumas das ideias extremistas que vemos hoje estavam à margem da sociedade alguns anos atrás e agora são moeda comum, até no espaço político, nos parlamentos e nos Governos. Políticos do Vox, por exemplo, tuitaram sobre a grande substituição. Eles ecoam as mesmas teorias da conspiração que alguns meses depois alimentaram ataques contra muçulmanos. Enfrentamos dois perigos: há uma ameaça contra nossas democracias porque essas ideias entraram em nosso espaço político e podem influenciar o futuro de nossas sociedades; e com tanto incentivo por parte de alguns grupos políticos, tiveram uma enorme difusão em públicos que antes não alcançavam.”

Um exemplo claro, explica a pesquisadora, é tudo o que está acontecendo com a pandemia em torno do chamado QAnon, uma teoria da conspiração que mistura supostas orgias de pedófilos, com a covid-19, o 5G e o controle mental, que inundou as redes sociais nos últimos meses. E esse é precisamente o outro grande problema que seu livro aponta: grande parte desse material repugnante e perigoso é preparado nas redes sociais antes de saltar para os chats privados e para as profundezas da internet.

A grande vitrine de tudo isso é pública, sem que os responsáveis por essas redes façam grandes esforços para detê-la. “A forma como o Facebook funciona e o modo como a plataforma está desenhada prioriza conteúdos mais extremos, mais radicais e mais incríveis, teorias de conspiração ou conteúdos violentos ou de ódio, porque o objetivo é captar a nossa atenção e aumentar tanto quanto possível o tempo que passamos na plataforma. E, infelizmente, os conteúdos violentos e radicais atraem muito a atenção.”

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