Amigos sobreviventes, o pior já passou. E o maldito 2020 que se dane

by @prflavionunes

A editora Blackie Books acaba de lançar na Espanha uma nova edição da Odisseia. Com intrépida e visionária decisão, a editora optou por não traduzir do grego, mas do inglês (e isso foi feito de maneira genial por Miguel Temprano García), já que usou a versão de Samuel Butler (1835-1902), um vigoroso texto que aproxima a obra do leitor contemporâneo. Como diz o prólogo, a Odisseia deve ser a obra mais influente da história da literatura: isso foi decretado por uma pesquisa realizada pela BBC em 2018 com críticos e escritores de 35 países. É um texto que se lê e relê há quase 3.000 anos e que encheu de referências inúmeras obras posteriores. Ultimamente a personagem de Penélope, essa rocha que o machismo manda calar, está sendo revista e exaltada, mas quem me intriga é Ulisses. Porque é o herói venerado por todos, mas na realidade tanto na Odisseia quanto na Ilíada demonstra ser um tipinho repugnante, astuto, mentiroso e amoral, alguém que não se importa em assassinar um homem adormecido, um traço muito pouco épico que hoje seria terrível em um protagonista de Hollywood.

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É que nossa ideia dos heróis mudou. O heroísmo nos difíceis, sangrentos e perigosos tempos antigos consistia em evitar a morte a todo custo. Em cumprir o mandato de sobrevivência da espécie. É por isso que os velhos eram tão reverenciados (exatamente o contrário de agora): eles eram a prova viva, e com toda propriedade, de que se podia enganar a morte por algum tempo. Nós, humanos, somos criaturas incrivelmente adaptativas, tão tenazes em nossos desejos de viver como as baratas. Essa resistência legendária é o que nos fez triunfar como espécie até nos tornarmos uma praga. E tudo isso está personificado em Odisseu. O ensinamento é claro: rouba, mata e mente, mas vive.

Hoje as pessoas continuam roubando, matando e mentindo não mais para viver, mas, pior ainda, para prosperar. Mas os valores que defendemos publicamente mudaram, e isso é, pelo menos, um pequeno avanço. Vejamos, por exemplo, a última expedição de Robert Falcon Scott ao Polo Sul, de 1910 a 1913. Quando, depois de infindáveis dificuldades, conseguiram chegar ao Polo e descobriram que Amundsen havia chegado antes, Scott e seus quatro companheiros voltaram para a base, mas morreram pelo caminho depois de atrozes sofrimentos. Foi uma agonia muito longa, a 50 graus abaixo de zero, sempre paralisados e encharcados, famintos, cegados pela neve, com o corpo ulcerado, sentindo como suas extremidades congelavam e descongelavam; como as unhas dos pés caíam ou os dedos gangrenavam, como perdiam os dentes por causa do escorbuto, ou como se desfazia, congelada, a ponta do nariz. Tudo isso dolorosíssimo. Antes de morrer, sem combustível, sem comida, depois de ter visto morrer seus companheiros, Scott disse por carta a um amigo que, com seu calvário, estavam dando um bom exemplo: “Não porque tenhamos nos metido em situações difíceis, mas porque, quando chegou o momento, nós as enfrentamos como homens. Se tivéssemos ignorado os enfermos, teríamos conseguido chegar”. Este é o novo herói: a vida a qualquer preço não serve mais. Antes morrer do que trair a si mesmo.

Faltam horas para que acabe este ano de 2020, que está sendo nosso calvário particular. Parece-me muito oportuno, uma dessas mágicas coincidências da literatura, que esta nova edição da Odisseia saia agora. Ela nos fala da nossa capacidade de sobrevivência, do empenho em continuar e de que é possível recuperar a vida. Mas não a qualquer preço, como demonstraram o pessoal sanitário, os caixas de supermercado, os trabalhadores do transporte e outras gentes estoicas que se sacrificaram pelos outros. E também todos aqueles que tentaram manter a chama da esperança e da beleza, como a Blackie Books, lançando em tempos tão incertos esta fantástica edição de capa dura, com ilustrações geniais de Calpurnio, substanciosas notas explicativas e um bônus final com textos e canções de Dorothy Parker, Margaret Atwood, Monterroso, Nick Cave e Javier Krahe. Uma maravilha que levanta o ânimo. Amigos sobreviventes, o pior já passou. E o maldito 2020 que se dane.

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