De São Paulo a Jacarta, uma geografia transcontinental da dor

by @prflavionunes

Em um jardim de Washington, uma neta observa como florescem algumas “malditas petúnias”, as últimas que seu avô plantou. Em um quarto em Sevilha, pais têm o olhar perdido na coleção de gibis do filho. Em Jacarta, uma mulher ainda não pôde visitar o túmulo do marido. A quilômetros de distância, em todos os lugares do mundo, viúvas e viúvos, irmãos, órfãos compartilham a mesma dor. Um milhão de famílias juntam a ausência de seus entes queridos ao fato de não terem podido se despedir deles.

Um milhão de vidas a menos

Em menos de nove meses, a pandemia de covid-19 atingiu um número simbólico de mortes no mundo que continuará a crescer enquanto a ciência não encontrar uma vacina eficaz

MINHA ESPOSA PASSOU SUA ÚLTIMA NOITE EM UM COLCHÃO JOGADO EM UMA SALA DE ESPERA

ASSANE SECK | SUA ESPOSA MARIE BA, DE 53 ANOS, MORREU EM DAKAR EM MAIO

O que mais dói em Assane Seck, de 62 anos, é não ter podido enterrar a esposa como Deus manda. Ainda hoje, quatro meses depois, arrasta os pés em sua casa em Dieppeul, no coração da cidade senegalesa de Dacar, com a penosa sensação de ter deixado algo por fazer e sem poder voltar atrás para corrigi-lo. “Negaram-nos o acesso ao corpo dela e agora está lá, no seu túmulo, sem que possamos lavá-la e prepará-la. Somos muçulmanos, é algo muito importante para nós”, afirma, levantando a voz sobre o murmúrio de suas cunhadas que lavam roupa no quintal enquanto as crianças brincam nas poças.

Marie Ba foi sua esposa durante 24 anos. Tiveram três filhos e uma neta. “Foi um casamento arranjado, ela era minha sobrinha. Foi combinado pela família e nós aceitamos. Ela demonstrou ser uma mulher e uma mãe excepcional, compreensiva e religiosa. Quando não estava fazendo trabalhos domésticos, rezava”, diz este estivador aposentado. Nos primeiros dias do Ramadã, Marie, de 53 anos, começou a sentir fortes dores na barriga. “Eu disse a ela para interromper o jejum. Dois dias depois, levei-a ao hospital. Era sábado, 9 de maio”, lembra Seck.

Como não havia leitos disponíveis, ela passou o dia todo sentada em uma cadeira de rodas. O marido ia comprar os analgésicos e o médico os administrava na veia. Nem febre, nem tosse, nem dor muscular, apenas aquele desconforto intenso e constante no estômago. “Comprei um colchão para ela, joguei no chão e nele passou sua última noite. Era uma espécie de sala de espera. Ficamos conversando, vi como ela sofria. Às seis da manhã adormeceu durante uma hora e, pouco depois de acordar, morreu”.

Ainda não tinham passado nem oito horas e o nome e o bairro de Marie já circulavam nas redes sociais. Foi a 19ª morte por coronavírus no Senegal. “Antes que outros nos rejeitassem, decidimos nos confinar e passar a quarentena em casa”, acrescenta o viúvo, ciente do estigma com que são castigado aqueles que sofreram essa doença. Assane Seck aceitou seu destino, mas quando lhe disseram que havia sido covid-19, não acreditou.

“Ela tinha um problema numa perna e não saía na rua, como ia se contagiar?”, comenta. Dos 18 membros da família que convivem, apenas ele testou positivo. Foi internado em um hospital da periferia da cidade sem sintomas. Continua não acreditando muito. Em um país de 16 milhões de habitantes com menos de 15.000 infectados e apenas 300 mortos, muitos duvidam como Seck. “Tenho saudade dela, mas até as crianças aceitaram. Deus quis assim. Agora tentamos não falar muito do assunto”. A neta Siga, de 15 meses, está sentada em seu colo. A vida continua em Dieppeul.

A ORIGEM DA MINHA DOR ESTÁ, LITERALMENTE, EM TODOS OS LUGARES

KRYSTEL ANDERSON | SEU AVÔ, ALEXANDER BOYLE, DE 76 ANOS, MORREU EM WASHINGTON EM MAIO

A recordação mais vívida que Krystle Anderson, 34 anos, tem do dia em que o avô morreu são os gritos de sua mãe no Zoom implorando para que alguém segurasse a mão dele. Alexander Boyle, de 76 anos, estava sozinho com a equipe médica quando morreu de coronavírus em Washington, em 6 de maio. Uma enfermeira tomou sua mão. De acordo com o protocolo do hospital, nenhum membro da família podia estar presente. Anderson tinha um relacionamento próximo com seu papa, como o chamava carinhosamente. Ela estava grávida quando o marido foi enviado para o Afeganistão e também quando foi para o Iraque. Boyle se encarregou de acompanhá-la e cuidou dela quando deu à luz. Era sua “força estabilizadora” em momentos de loucura, como agora.

Ninguém sabe com certeza como ele se contagiou. Depois de ficar trancado em casa durante dois meses, saiu para comprar flores, plantá-las e ter alguma atividade doméstica. Em poucos dias, Boyle e seu parceiro, Viktor, testaram positivo para covid-19. “Malditas petúnias”, murmura Krystle, ao lado do vaso com as sementes já florescidas, fora da casa do avô. A família percebeu que algo estava errado porque Boyle, ex-membro do comitê de campanha democrata ao Senado, postava mensagens contra o presidente Donald Trump todas as manhãs. Mas naquele dia do início de maio não houve atividade em suas redes sociais. Ninguém conseguia entrar em contato com ele, então a polícia entrou em sua casa. Estava caído no chão. Seu parceiro estava fora da cidade. Já no hospital, houve momentos em que deu sinais de melhora, mas se desvaneceram assim como sua lucidez. Não queria ser conectado a um respirador, pois, dadas as suas pré-condições médicas havia o risco de morrer quando o entubassem ou extubassem. Em uma semana, morreu.

Krystle afirma que é muito difícil passar por esse momento quando a lembrança de sua dor está em todos os lugares. “Usamos máscaras por causa da doença que matou meu avô, mantemos a distância social por causa disso, meus filhos aprendem em casa pela mesma razão”, enumera. “Nós literalmente não temos escapatória, estamos presos em um limbo de dor constante.” Boyle gozava a vida. Gostava de viajar, de apostar e de gente. A família não pôde realizar uma cerimônia em sua homenagem devido à pandemia, mas planeja se reunir em dezembro em Washington e fazer um tour pelos seus bares favoritos. Depois, espalhará suas cinzas no rio Potomac. Ele era um amante da capital. Foi a todas as cerimônias de posse presidencial. De 1965 até 2012. Quando Trump assumiu o cargo, abandonou a tradição.

JAMAIS ME PASSOU PELA CABEÇA QUE FOSSE COVID

DIEGO VILLEGAS | SUA ESPOSA ADRIANA PÉREZ, DE 43 ANOS, E SUA CUNHADA MORRERAM NA CIDADE DO MÉXICO EM MAIO

Em Iztapalapa, um bairro popular da Cidade do México, o epicentro da covid-19 no país latino-americano, e talvez em quase todo o subcontinente, muitíssimos moradores duvidavam da existência do coronavírus. Essa pandemia que vinha da Europa ou dos Estados Unidos não era motivo de preocupação, ainda mais eles, que praticamente têm de lutar pela sobrevivência diariamente… A família de Adriana e Guadalupe Pérez Lázaro, de 43 e 38 anos, é o exemplo disso. Todos compartilham uma casa em uma região humilde do bairro. Todos se contagiaram. Diego Villegas, marido de Adriana, lembra que no início os sintomas da esposa eram os mesmos de “uma gripe qualquer”. Ela, porém, não melhorava com o passar dos dias. Foram a um médico, a outro. Até três a receberam, o que para ele é um exemplo de indiferença e despreparo. Sua mulher acordava bem e quando parecia que iria sair, tinha outra recaída. “Jamais me passou pela cabeça que fosse covid”, recorda, embora naquele momento, no final de maio, a pandemia já estivesse disseminada em todo o mundo e amplamente no México. O país norte-americano é o quarto em número de mortos, embora por milhão de habitantes os números sejam um pouco melhores. Os números oficiais, claro, já que a diferença no número de mortes é de quase três vezes o que as estatísticas apontam.

A deterioração da saúde de Adriana era cada vez mais evidente. Recomendaram que tomasse um pouco de oxigênio, mas Darío não conseguiu. Procurou em farmácias, na Internet, “mesmo que fosse um tambor pequeno”, mas não deu. Sua mulher foi piorando, não tinha forças para se levantar, dava um passo e se sentia exausta. “Um cansaço muito exagerado”. Como tantos, Diego e Adriana acataram as recomendações das autoridades, em que o “fique em casa” foi aplicado às últimas consequências, principalmente em um país onde as pessoas não costumam ir ao médico. Adriana morreu durante a transferência para o hospital, onde sua irmã, Guadalupe, morreria pouco depois. Ambas foram cremadas. Suas cinzas estão em um altar no pátio principal da casa. Não puderam ser enterradas em Puebla, de onde vieram e onde o pai delas está enterrado.

O drama de Diego não parou por aí. Depois da morte da esposa, teve de enfrentar boatos e acusações dos vizinhos: como Adriana morreu asfixiada, eles o acusaram de tê-la matado.

DESPEDIMO-NOS DELE EM UMA AMBULÂNCIA, TODOS NÓS ESTÁVAMOS INFECTADOS

RACHEL HEBER | SEU MARIDO, O RABINO ABRAHAM YESHAYAHU HEBER, 55 ANOS, MORREU EM JERUSALÉM EM ABRIL

“A vida sem ele é outra vida. Foi o maior presente que recebi de Deus.” O luto de Rachel Heber não cessou de seis meses para cá, quando o coronavírus levou seu marido, o rabino Abraham Yeshayahu Heber, aos 55 anos. Diante da grande biblioteca de textos religiosos que legou à esposa, Rachel se esforça para não desabar. A praga não teve compaixão da comunidade ultraortodoxa de Israel. “O que começamos juntos para dar esperança às pessoas continua; a vida segue”, responde ela amparada por um sorriso que a ajuda a conter a emoção. Nascida em Jerusalém há 53 anos, formada professora em Chicago, Rachel Heber fundou com o marido, em 2007, o Matnat Chaim (Dom da Vida), um centro que coordena a doação altruísta de rins.

O rabino Heber —uma figura reconhecida na sociedade hebraica por seu trabalho humanitário— se isolou no início de março. Como receptor de um transplante de rim, tomava imunossupressores. “Não sabemos como ele foi infectado, mas todos acabamos contagiados”, diz sua viúva na casa da família em Har Nof, um bairro hassídico de Jerusalém. “Os médicos nos prescreveram antibióticos e recomendaram que ficássemos em casa”.

Em 13 de abril, quando começou a ter dificuldades respiratórias, foi levado para o hospital Hadashah, em Ein Keren (nos arredores de Jerusalém). “Ficou na UTI, às vezes acompanhado de um profissional de saúde doador de rim por meio da nossa organização”, lembra a viúva. “Dez dias depois, após uma aparente melhora que o desconectou do respirador, nós o perdemos.”

“Estávamos todos confinados: minha filha de 16 anos, meu filho mais velho e minha nora. Não pudemos dizer adeus a ele”, seu sorriso escurece. “Tivemos que nos despedir dele dentro de uma ambulância”. O corpo carregado em uma maca por profissionais de saúde vestindo roupas de proteção cercou o veículo em uma procissão fúnebre.

Israel tem agora uma das taxas mais altas de infecção por covid-19 no mundo, 531 por milhão de habitantes em sete dias, embora tenha registrado apenas 1.412 mortes desde março entre seus 9,2 milhões de habitantes. As minorias árabe (20% da população) e ultraortodoxa (12%), as mais desfavorecidas na escala social, respondem por cerca da metade dos casos.

“É uma doença terrível. Não me deixou acompanhá-lo até o cemitério; tampouco a família recebeu em casa as tradicionais visitas de pêsames da shivá [semana judaica de dor e luto]”, lamenta Rachel Heber. “Embora minha filha tenha perdido o pai, ele continua a estar conosco em nossos corações. Falamos muito dele”.

EU SÓ TINHA A ELES E OS PERDI SEM UMA EXPLICAÇÃO. FOMOS ABANDONADOS

CATERINA DE LUCIA | SEUS PAIS, DE 75 E 76 ANOS, MORRERAM EM MARÇO E ABRIL EM BRESCIA (ITÁLIA)

A primeira onda, inesperada e selvagem, foi a mais cruel. Caterina de Lucia, uma napolitana de 50 anos, mudou-se para Brescia (Lombardia) em 1994. No sul faltava trabalho, ganhava pouco e costumava ser na informalidade. Conseguiu um bom emprego em um hospital do norte. Quatro anos depois, seus pais a acompanharam, numa viagem em busca de prosperidade. “E olhe… daria qualquer coisa para voltar atrás e nunca ter me mudado de Nápoles”. Brescia, junto com Bérgamo, foi a região mais atingida pelo coronavírus na Itália. A região da Europa onde o excesso de mortes foi maior na primeira onda. Os pais de Caterina morreram aqui com apenas 23 dias de diferença. A mãe tinha 75 anos. O pai fez 76 anos no hospital.

Em 20 de fevereiro, a Itália detectou o primeiro caso. Foi em Codogno, uma pequena localidade lombarda confinada no dia seguinte, junto com 10 outros municípios da região. Brescia continuou funcionando com certa normalidade. “Já se sabia, mas aqui não tomaram as medidas adequadas”, lamenta Caterina. Sua mãe começou com febre e tosse em 26 de fevereiro; o pai, três dias depois. O médico receitou-lhes paracetamol e repouso em casa. Não havia testes, tampouco protocolos: era a pré-história da pandemia. “Chamei o médico porque vi que estavam muito mal. Ele me disse que eu estava muito assustada, que assistia à televisão e tinham colocado na minha cabeça essa história de covid. Ele me chamou de “alarmista”, me disse para parar de assistir ao noticiário. Respondi que conhecia meus pais e que eles não estavam bem. Mas ele me ignorou”.

No dia 5 de março, depois de uma noite infernal, os dois com febre alta e na mesma casa que seus dois filhos e o marido, Caterina decidiu levá-los ao hospital em seu próprio carro. Às 17h15 eles entraram no centro médico, mas não saíram vivos. “Ligaram-me à meia-noite, meu pai havia tido uma parada cardíaca e estava entubado. No dia seguinte ainda não sabiam se era positivo. Deram-lhe morfina e ele entrou em coma farmacológico”. A mãe morreu em 8 de março de forma inesperada pelos médicos. “Meu marido começou a ter febre, mas ninguém vinha vê-lo. Não o testaram. Minha mãe tinha acabado de morrer, meu pai estava na UTI, meu marido em um quarto isolado e eu com os dois filhos”. No dia 1º de abril teve que se despedir do pai sem poder vê-lo.

O marido de Caterina sobreviveu. Mas ela não consegue encontrar uma maneira de superar o trauma. “É impossível superar isso mentalmente. Todos os dias coloco uma máscara e vejo que estou viva. Mas algo morreu dentro de mim. Todas as manhãs me faço as mesmas perguntas: onde eles se infectaram? O que realmente aconteceu? Fiquei sozinha, sou filha única. Eu só tinha a eles e os perdi sem que ninguém me desse uma explicação. Fomos abandonados”. Sabe que um milhão de pessoas passaram por algo semelhante. Falar com eles, apenas às vezes, acalma a dor.

QUANDO ELE MORREU NA UTI, FICAMOS UMA HORA SEM FALAR NEM SE MEXER

JUAN ANTONIO DUTOIT | SEU FILHO, JUAN CARLOS DUTOIT, 38 ANOS, MORREU EM SEVILHA EM ABRIL

O antigo quarto de Juan Carlos Dutoit preserva intacto o testemunho de suas duas paixões: as coleções e o vôlei. Dezenas de gibis, duas espadas laser de Guerra nas Estrelas e bonecos de ‘GI Joe’ perfeitamente organizados se misturam com bolas e troféus. “Às vezes ele guardava até os papeizinhos de chiclete”, brinca a mãe, Carlota, entre o sorriso e o olhar perdido enquanto mostra o quarto. Dutoit, cientista da computação de 38 anos e treinador de um time feminino de Dos Hermanas (Sevilha), morreu em meados de abril em um hospital em Sevilha depois de contrair o coronavírus. Nem Carlota Carmona, de 67 anos, nem o marido puderam se despedir do mais velho dos dois filhos, que não tinha patologias anteriores. Depois de alguns dias doente em casa, passou 14 dias no hospital, na maior parte do tempo em estado muito grave.

Dutoit havia deixado a casa da família alguns anos atrás. Finalmente conseguira um bom emprego na área de informática e estava feliz com Rocío, sua namorada, com quem queria constituir família. “Foi o amor da minha vida. Agora estaria grávida”, conta Rocío por telefone entre lágrimas. Ela o acompanhou em seus últimos dias no apartamento que dividiam, tratando-o de acordo com as prescrições médicas telefônicas até que não teve escolha a não ser pedir ajuda urgente. Ele foi levado de ambulância ao hospital na noite de sexta-feira da Paixão.

“O dia seguinte à internação foi horrível, não atendia ao telefone nem nos ligava, estávamos em uma situação que não desejo a ninguém”, conta Juan Antonio Dutoit, de 64 anos, na sala de sua casa. Durante o confinamento, Juan Antonio foi o porta-voz da família mesmo que isso lhe “pesasse”, e informava por videoconferência o irmão e a namorada do filho sobre seu estado de saúde graças aos dois telefonemas diários que recebia do hospital.

A última ligação aconteceu fora do horário normal: o filho morreu à noite na UTI por falência múltipla de órgãos. “Ficamos uma hora sem falar nem nos mexer”, diz o pai. Depois viria a cremação e um adeus com apenas três pessoas, o que Juan Antonio agradece de certa maneira. “Eu não estava em condições de apertar a mão de todo mundo. O luto tem sido muito difícil porque estamos cercados por isso [a pandemia]. Está sendo muito duro, isso não acabou e não vai acabar antes de muito tempo”, diz esse pai com notável fortaleza.

O QUE MAIS ME DÓI É QUE NÃO PUDE ME DESPEDIR DELA

GABRIEL ERICK DOS SANTOS | SUA IRMÃ, ERIKA REGINA LEANDRO DOS SANTOS, MORREU AOS 39 ANOS EM SÃO PAULO, EM ABRIL

Quando Gabriel Erick dos Santos, de 24 anos, acordou em um hospital depois de quase morrer afogado no início de 2019, a primeira coisa que viu foi o sorriso da irmã, Erika Regina Leandro dos Santos, e a primeira coisa que ouviu foram a piadas e gargalhadas dela. Quando Erika foi internada em um hospital em São Paulo, onde moram, no início de abril, Gabriel não a viu mais. Aos 39 anos, sua irmã se tornou uma das primeiras vítimas fatais de covid-19 no Brasil. “O que mais me dói é não ter podido estar ao lado dela nem ter me despedido dela”, lamenta o professor de inglês e músico em sua casa simples e pouco mobiliada, na periferia da maior cidade brasileira.

Erika, uma atriz que prestava serviços administrativos para sobreviver, tinha vários problemas de saúde —sobrepeso, diabetes, hipertensão— e até sofreu um acidente vascular cerebral no ano passado, mas sempre se recuperava. “Minha irmã vivia a vida como se nunca fosse morrer”, lembra Gabriel, com um sorriso. Então, quando disse que havia tirado 10 dias de licença médica porque não estava se sentindo bem, seus seis irmãos pensaram que dessa vez não seria diferente. Gabriel mostra em seu celular a última mensagem que lhe escreveu quando ela disse que estava indo para o hospital: “Me avise quando sair e me ligue”. Nunca mais voltaram a se falar. Assim que chegou ao hospital, Erika teve que ser internada e, nos cinco dias seguintes, seus parentes só tiveram notícias dela por intermédio de um médico que mandava mensagens ou ligava todos os dias às sete da noite. Nos dias em que ele não o fazia, Gabriel se preparava para o pior.

“Uma perda brutal.” É assim que ele e os irmãos se referem à morte de Erika. Ela, dizem, era a pessoa que mantinha a família unida. “Nossos pais morreram quando eu era pequeno, então tínhamos uma relação de muita amizade, mas, ao mesmo tempo, era como se ela fosse minha mãe, porque foi ela quem me criou”, conta. Sua irmã também era conhecida por ter muitos amigos. “Ela era uma pessoa muito aberta, era muito fácil se aproximar dela e ter carinho por ela”, diz. O que Gabriel lembra como o mais terrível foi o enterro, com apenas seis pessoas (quase todas da família), em que só puderam fazer uma breve oração, enquanto os funcionários do cemitério os apressavam. “Nem sequer pude colocar no caixão uma corrente com o nome dela gravado, uma lembrança de família”.

Apesar da dor, Gabriel fala com serenidade e mistura lágrimas com sorrisos ao lembrar-se de Erika. Pega na sala o violão preto e empoeirado que sua irmã lhe deu quando fez 15 anos. “Foi ela quem me incentivou a compor e a tocar. Não tinha dinheiro, mas pediu um empréstimo a um amiga para me dar esse presente. Ela me deu tudo, material e emocionalmente, porque confiava que eu daria o meu melhor para progredir na vida”, diz, ao lado da bateria —toca outros instrumentos e tem um grupo de rock. “Éramos os dois artistas da família”, ri. Entre os muitos planos que ambos faziam para o futuro, o principal era ver um ao outro no palco. Também queriam fazer a mesma tatuagem do disco There’s Nothing Left to Lose, do Foo Fighters, o favorito de Erika. Agora, Gabriel fará isso como uma homenagem a ela.

Ele não sente medo e nem raiva com a situação da pandemia no Brasil, onde são mais de 4,6 milhões de infectados e mais de 140 mil mortes. “Ninguém sabe muito bem o que fazer, mas temos que pensar no próximo além de não infectá-lo, pensar em como tratá-lo com respeito e humanidade. É o que minha irmã gostaria”.

AINDA NÃO FOMOS AO CEMITÉRIO, É PERIGOSO, AINDA HÁ MUITOS CASOS

INDRA DEWI | SEU MARIDO, HARRY SANTOSO, DE 54 ANOS, MORREU EM MARÇO EM JACARTA

Embora meio ano tenha passado desde a morte do marido, Indra Dewi ainda não pôde visitar seu túmulo. Harry Santoso foi um dos primeiros 100 casos de covid-19 detectados na Indonésia, que em março estava apenas começando a entrar em contato com a doença. O diagnóstico veio depois que o homem, de 54 anos, passou cinco noites em um hospital de Jacarta sofrendo de uma insuportável falta de ar, febre e náuseas. Poucas horas depois de receber a confirmação do positivo, Santoso morreu. “A parte mais difícil foi não poder estar com ele quando morreu e que não pudéssemos enterrá-lo ou realizar um funeral”, conta Dewi desde a capital indonésia.

Nem ela nem os filhos, Jessi Renata e Jeffrey Renardi, puderam ir ainda ao local onde Santoso foi enterrado, um cemitério dedicado exclusivamente aos mortos de covid-19. “É perigoso ir, ainda há muitos casos…”, avisa Dewi. Mais do que muitos; a Indonésia vem quebrando recordes de contágio há dias, com cerca de 4.000 novos casos detectadas diariamente, aumentando vertiginosamente o número total de infecções, que ultrapassa 260.000. O vasto arquipélago asiático, a quarta nação mais populosa do planeta, com quase 270 milhões de habitantes, tem o maior número de mortes do sudeste asiático. Mais de 10.000 pessoas morreram desde março.

Naquela época, “quase não se faziam testes” na Indonésia, afirma Dewi, “muitos podem ter morrido de covid-19 sem saber”. No caso de Santoso, os dois irmãos médicos de Dewi aconselharam que fosse ao hospital quando viram que ele não estava se recuperando do que inicialmente acreditavam ser um resfriado. Santoso, que dirigia um restaurante de frutos do mar com a esposa, continuou com sua rotina até que perdeu as forças. No dia 21 foi internado e nenhum familiar voltou a vê-lo. “No começo ele se comunicava por WhatsApp, mas no final estava muito fraco… As enfermeiras ou os médicos tinham que nos ligar para vê-lo”, lembra a mulher. Cinco dias depois, em 26 de março, Santoso morreu. Dewi pôde ver o corpo sem vida do marido pela última vez através de uma tela, uma despedida difícil de assimilar depois de quase vinte anos de casamento.

Dewi, de origem chinesa e cristã como o marido, precisa visitar seu túmulo e realizar um funeral para viver o luto. Algo que ainda não parece possível, com Jacarta entrando em seu segundo confinamento parcial diante do açoite da pandemia, que expôs as deficiências do sistema de saúde da Indonésia (segundo a Organização Mundial de Saúde, o país tem apenas seis leitos para cada 10.000 habitantes, menos da metade do Japão, que lidera o ranking mundial com mais de 13). “Pensávamos que a pandemia acabaria alguns meses depois da morte do meu marido, mas parece que isso não acontecerá até 2021, quando finalmente poderemos visitá-lo e fazer-lhe uma cerimônia e um funeral dignos”, lamenta.

Com informações de José Naranjo (Dacar), Antonia Laborde (Washington), Héctor Guerrero (Cidade do México), Juan Carlos Sanz (Jerusalém), Virginia Martínez (Sevilha), Daniel Verdú (Roma), Joana Oliveira (São Paulo) e Paloma Almoguera (Singapura).

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