“Estamos batalhando para manter os leitos de pacientes cardiopatas e oncológicos”: o colapso da saúde com a covid-19

by @prflavionunes

Em janeiro, os pacientes de covid-19 que morriam em Manaus (AM) por falta de oxigênio hospitalar escancararam a gravidade da pandemia de coronavírus no Brasil. No momento em que o país registra novos recordes de mortes em 24 horas e quase todos os Estados têm elevada ocupação dos leitos de unidades de terapia intensiva (UTIs), especialistas alertam para o risco de colapso do sistema de saúde (tanto público quanto privado). Nesse caso, as pessoas não morreriam apenas em decorrência direta da covid-19, mas faltaria atendimento inclusive para quem precisa de cirurgias de emergência, por exemplo. Um acidente na rua, em que a vítima, em circunstâncias normais, receberia o tratamento adequado, pode ser fatal.

“Um colapso acontece quando o sistema não é capaz de atender aqueles que precisam de internação. Quando você tem 100% de ocupação dos leitos, você está ao limite. Mas, se além disso, você tem 200 pessoas esperando na fila, isso é um colapso. E aí, outros problemas de saúde serão agravados ou deixaram de ser atendidos por conta disso”, explica Carlos Machado, coordenador do Observatório Fiocruz Covid-19.

A Fiocruz publicou nesta quinta-feira um boletim com a série histórica de ocupação de leitos de UTI por pacientes adultos de covid-19 entre julho do ano passado e o dia 1 de março deste ano: das 27 unidades federativas, 19 (incluindo o Distrito Federal) estão classificadas como “zonas de alerta críticas” por registrar elevadas taxas de ocupação. Escapam do panorama Sergipe (ocupação baixa), Amapá, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Alagoas e Paraíba, todos registrando taxas de “ocupação média” dos leitos. “Mesmo no período entre a segunda metade de julho e o mês de agosto [de 2020], quando foram registrados os maiores números de casos e óbitos, não tivemos um cenário como o atual, com a maioria dos Estados e Distrito Federal na zona de alerta crítica”, destaca o boletim.

“Vivemos uma situação alarmante que se agravou, principalmente, nas últimas semanas. Eu evito falar que estamos à beira do precipício porque isso era o que eu acreditava em maio de 2020. Mas, infelizmente, vimos que o panorama sempre pode piorar”, lamenta Machado. Diante desse cenário, alguns hospitais já tiveram que interromper todos os atendimentos. Foi o caso do Hospital Primavera (uma unidade particular) de Aracaju (SE), que, no dia 17 de fevereiro, chegou a suspender atendimentos de urgência e emergência devido à superlotação. O centro de saúde só conseguiu retomar os atendimentos 24 horas depois. Esse exemplo mostra que nem mesmo os pacientes da rede privada terão atendimento garantido no caso de um colapso do sistema sanitário.

“Em um cenário catastrófico, uma pessoa que precisar de um hospital não será atendida. No Sírio-Libanês, estamos batalhando para manter os leitos destinados aos pacientes cardiopatas e oncológicos”, conta Felipe Duarte, gerente de práticas médicas do Hospital Sírio-Libanês.

Cirurgias eletivas já estão sendo afetadas e pacientes que precisam de monitoramento estão tendo seus casos agravados, porque os recursos humanos também estão mais voltados para o combate à pandemia”, acrescenta Walter Cintra, médico e professor de de Administração Hospitalar e Sistemas de Saúde da FGV (Fundação Getúlio Vargas). O município de São Paulo anunciou nesta quinta a interrupção de cirurgias eletivas na rede pública, por exemplo. Carlos Machado, do Observatório Fiocruz Covid-19, cita como exemplo o fato de que, em 2020, caiu em 80% o diagnóstico de câncer de mama no Brasil. “Isso significa, na prática, um aumento de tumores entre a população.”

Os especialistas ouvidos pelo EL PAÍS indicam que a nova variante do coronavírus (surgida em Manaus) é potencialmente mais contagiosa, o que aumenta o número de infectados. Eles observam, além disso, que desde dezembro —quando chegou a boa nova da aprovação das primeiras vacinas no país—, aumentou a circulação de pessoas na rua e houve maior flexibilização de atividades. “Os pacientes que estão sendo internados não deixam o hospital rapidamente e acaba entrando mais gente do que saindo dos leitos”, comenta Duarte.

Esgotamento humano

Mesmo a ampliação do número de leitos e a reabertura de hospitais de campanha não mitigariam totalmente o risco de colapso, porque há um limite também de recursos humanos: depois de um ano na linha de frente, as equipes de saúde estão cansadas. “Em março de 2020, estávamos com 100% de energia, até 150%, porque tinha a curiosidade de aprender mais sobre a doença e como tratá-la. Mas agora as equipes se sentem cansadas”, conta o gerente de práticas médicas do Sírio-Libanês.

Para reverter a crise, os especialistas dizem que é preciso criar planos de contingência para diferentes cenários (desde baixa até elevada ocupação dos leitos), pensar soluções de acompanhamento à distância para os casos de infecção moderada e investir “maciçamente” na atenção primária à saúde, com distribuição de testes e rastreamento de contato —algo que o Brasil nunca fez. “A situação que vivemos é consequência da condução danosa dos governantes, principalmente do Governo Federal, que subestimou a gravidade da pandemia e desafiou os princípios básicos da ciência e do bom senso”, reclama Walter Cintra.

Um fator determinante —quiçá o mais importante— para sair do olho do furacão é contar com uma população consciente, usando máscaras e aderindo ao distanciamento social. “Essa situação não vai ser coisa de 15 dias ou um mês. No mínimo, este ano penaremos tanto quanto ou até mais do que no ano passado”, alerta Felipe Duarte.

Em sua história recente, o Brasil coleciona alguns episódios de colapso do sistema sanitário. Em 2018, crianças morreram por falta de internação em Manaus, devido à epidemia de sarampo. Em maio de 2009, a influenza A (H1N1) chegou ao país e sobrecarregou as unidades de saúde, provocando a morte de 2.146 pessoas ao longo de três meses. Nada se compara, no entanto, à gravidade do que o país enfrenta com a covid-19. “Desta vez, temos um aumento sistemático de contágio, algo que coloca em risco toda a população do país. E, além de tudo, enfrentamos incertezas. Não sabemos, por exemplo, se as vacinas já disponíveis serão eficazes contra as novas variantes do vírus ou se essas vacinas poderão ser adaptadas para combatê-las”, explica Carlos Machado, da Fiocruz. O especialista acredita que, para que a situação não fique ainda pior, seria preciso adotar “medidas mais restritivas” em todo o país por pelo menos duas semanas ou um mês.

Walter Cintra, da FGV Saúde, é mais contundente: “Estamos perdendo a corrida contra o vírus, e, neste ponto, só um lockdown nacional de pelo menos 15 dias mitigaria a situação. Senão pessoas continuarão a morrer sem ter acesso aos leitos”, afirma.

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