Joe Biden abre nova era nos EUA e assume desafio ‘rooseveltiano’ após insurreição promovida por Trump

by @prflavionunes

Biden nesta terça-feira em Washington, em ato em homenagem pelas vítimas da pandemia, que passam de 400.000 nos EUA.
Biden nesta terça-feira em Washington, em ato em homenagem pelas vítimas da pandemia, que passam de 400.000 nos EUA.Alex Brandon / AP

Um colega do Senado, Daniel Patrick Moynihan, disse certa vez a Joe Biden: “Não entender que a vida vai te bater e te derrubar é não entender o que há de irlandês na vida”. Àquela altura, o democrata já sabia disso, e não só pelo que tinha lhe contado seu avô Finnegan. Havia passado a infância esquivando os valentões que zombavam da sua gagueira. Perdera a esposa e a filha de um ano em um acidente de carro aos 29 anos. Veria morrer, décadas depois, outro de seus filhos, vitimado por um câncer atroz. “Mas para mim essa não é a história completa sobre o que é ser irlandês”, diz Biden em Promise Me, Dad, o livro que escreveu após do falecimento de Beau, que estava destinado a seguir sua saga política. “Nós, os irlandeses, somos as únicas pessoas no mundo nostálgicas do futuro. Nunca deixei de ser um sonhador. Nunca deixei de acreditar nas possibilidades.”

Quando era pouco mais que adolescente, a mãe de sua então namorada (Neilia, sua primeira esposa) lhe perguntou sobre sua vocação profissional, e o rapaz lhe respondeu que queria ser presidente dos Estados Unidos. Nesta quarta-feira, Joseph Robinette Biden Jr. (Scranton, Pensilvânia, 1942), nostálgico do futuro, crente nas possibilidades, tomará posse nesse cargo rodeado de cercas e soldados, perante um Capitólio invadido dias atrás por uma turba que queria evitar o seu Governo.

Biden assume a presidência que cobiçou durante toda a sua vida nas circunstâncias mais adversas que jamais projetou, e num momento de sua vida em que imaginava já estar de saída. Após duas pré-candidaturas presidenciais fracassadas e uma terceira, a de 2020, em que chegou a ser dado como morto nas primárias, o destino lhe pôs à frente de um país atravessado por três graves crises: a pior pandemia em um século, a recessão mais aguda desde a Grande Depressão, e uma espécie de ruptura de convivência social.

O desafio é maiúsculo, de calibre rooseveltiano, mas a oportunidade política é também colossal, rooseveltiana, para citar Franklin Delano Roosevelt, que tirou os EUA da crise 1929. Biden será o presidente que proclamará o fim da pandemia, que completará o programa de vacinação e o que poderá celebrar a superação da derrota econômica. O destino escreveu que este político de 78 anos e sem excessivo carisma, moderado em um tempo efervescente, ocupe o que no mundo da fotografia se chama de instante decisivo. Fala-se muito que será presidente de um só mandato. Pouco importa. Escreverá igualmente um episódio capital dos Estados Unidos e, com este, de meio mundo.

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O choque sobrevindo há menos de um ano atrapalhará ou dará asas às reformas? A derrota de Donald Trump e a recuperação da Casa Branca para os democratas geraram grandes expectativas, e nos últimos dias se espalham as comparações com a chegada de Franklin Delano Roosevelt ao poder em 1933. Este, logo depois de estrear no Governo, recebeu um visitante – a imprensa da época não o identificou – que lhe disse em relação ao New Deal: “Senhor presidente, se seu programa der certo, o senhor será o melhor presidente da história dos Estados Unidos. Se fracassar, será o pior”. E Roosevelt replicou: “Se fracassar, serei o último [presidente]”.

A história é citada em The Defining Moment, um livro de Jonathan Alter sobre aqueles primeiros 100 dias no poder, um relato, nas palavras do seu autor, sobre como um homem de gênio especial para a política e a comunicação reviveu o espírito de uma nação golpeada.

Num momento em que o país atravessa momentos sombrios, Biden assume com uma capacidade muito especial de adaptação ao meio (foi conservador quando o mundo o exigia e, por exemplo, mais rápido que Barack Obama em abraçar o casamento gay quando a sociedade girou) e o olfato suficiente para saber que essas suas qualidades distintivas – a empatia, a moderação, a doce normalidade – se tornariam o bálsamo necessário para este vibrante país.

“Tem semelhanças com Lyndon B. Johnson [vice e sucessor de Kennedy], porque ele também é um legislador experiente que serviu a um presidente mais jovem e agora está sendo chamado a realizar reformas progressistas, mais progressistas do que se espera dele”, comenta por email o escritor e jornalista Evan Osnos, ganhador do Pulitzer e autor de Joe Biden. American Dreamer, nova biografia do próximo presidente. Osnos, que acompanha e cobriu Biden durante anos, aborda a ambição do veterano democrata, uma condição que costuma passar despercebida no vice-presidente da era Obama, eclipsada por esse aspecto de homem cordato.

Será o primeiro presidente desde Ronald Reagan a não ter passado por nenhuma das oito universidades da Ivy League – esse olimpo educativo formado por Harvard, Columbia e Princeton, entre outras –, uma circunstância que hoje, dado o clima de desconfiança contra as elites, representa algo de virtude política. Em uma reportagem recente do The New York Times sobre a preparação de sua primeira onda de decretos, assessores que trabalham com ele contavam que detesta a linguagem excessivamente técnica ou acadêmica, e que com frequência interrompe a conversa dizendo: “Pegue o telefone, ligue para a sua mãe e diga a ela o que você acaba de me dizer. Se ela entender, podemos continuar conversando”.

Sim, se a mãe entender, não o pai ou o irmão. Biden é uma criatura da Geração Silenciosa, esse grupo de norte-americanos que nasceu depois da Grande Geração, que combateu pela democracia na Segunda Guerra Mundial, mas antes dos boomers e sua revolução cultural. Nascido no seio de uma família de classe trabalhadora, filho de um vendedor de carros Chevrolet, será o primeiro presidente católico desde John Fitzgerald Kennedy. Também, o que chega ao número 1.600 da avenida Pensilvânia com maior bagagem política. Tomou posse no seu primeiro cargo em Washington, de senador por Delaware, em janeiro de 1973, aos 30 anos, tornando-se assim um dos mais jovens integrantes da Câmara Alta na história. Agora, assumirá o cargo de presidente como o mais idoso.

Entre um marco e outro, viu a sociedade mudar e contribuiu para isso no Congresso. Negociou com os políticos segregacionistas, votou a guerra do Iraque, dirigiu – de um modo que hoje envelheceu mal – a primeira grande audiência por uma acusação de assédio sexual (Anita Hill contra Clarence Thomas, que seria confirmado como juiz da Suprema Corte, em 1991). Agora, promete impulsionar a mais ambiciosa reforma ambiental, social e trabalhista da história.

“Nas decisões importantes que precisam ser tomadas rapidamente, aprendi com os anos que um presidente nunca terá mais de 70% da informação de que necessita. Assim, uma vez que você consultou os especialistas, os dados e as estatísticas, tem que estar disposto a confiar na sua intuição”, disse o novo presidente no passado.

Biden prometeu ao mundo que os Estados Unidos “estão de volta” ao tabuleiro global após quatro anos de guinada isolacionista. Ao seu país prometeu curar as feridas. Chega com muitos planos e um objetivo de fundo, recuperar a unidade norte-americana, ou algo próximo a isso. Pretende buscar acordos com os republicanos no Congresso, tirar partido da sua experiência como legislador, e tratar de evitar que o novo impeachment de Trump, ainda a ser julgado no Senado, condicione sua caminhada.

Sofrerá dificuldades, esse lado irlandês da vida. Mais da metade dos eleitores de Trump – e foram 74 milhões em 2020 – acha que o democrata será um presidente ilegítimo, que venceu as eleições de forma fraudulenta, apesar de nem a Justiça nem as autoridades eleitorais terem encontrado qualquer sinal de tais irregularidades. Passado esses primeiros 100 dias de graça, também receberá fogo amigo, pressões dos flancos mais esquerdistas do Partido Democrata, que receberam com certa desilusão um gabinete formado por veteranos da velha-guarda obamista. Mas também governará uma sociedade que passou quatro anos crispada e quer uma mudança.

Nesta terça-feira, quando deixava sua cidade, Wilmington (Delaware), e seguia rumo a Washington para a posse, lembrou-se de seu filho morto em 2015. “Só lamento uma coisa, que Beau não esteja aqui, porque deveria ser ele a tomar posse como presidente.” A nostalgia do futuro não é incompatível com a do passado.

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