Pierre Cardin, licença para vender

by @prflavionunes

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Ele foi o pai do prêt-à-porter. E o padrasto da minissaia. Também se gabava de ter sido o pioneiro da moda unissex. E até de ter concebido a fórmula de licenciamento que tantas alegrias econômicas deu à indústria da moda no último meio século. “Tive muita sorte. Fui parte de um momento de pós-guerra no qual tudo teve de ser feito de novo”, disse uma vez, não exatamente por modéstia. No entanto, fazia tempo que ninguém na indústria reconhecia a importância do estilista que antecipou o futuro. Como sempre, é agora, depois de sua morte, na terça-feira, aos 98 anos, que convém resgatar seu credo. Pierre Cardin, o visionário que nasceu artista e morreu empresário.

Não é fácil colocar em perspectiva o legado do polifacético criador de origem italiana (San Biagio di Callalta, 1922; seu verdadeiro sobrenome era Cardine), fora a conjuntura histórica que compartilhou com André Courrèges, Mary Quant e Paco Rabanne. Porque sua revolução não foi apenas no vestuário. Móveis, carros, casas, material de escritório e até alimentação: sua assinatura está presente em uma produção em massa, em série, que chegou a lhe custar sua reputação como estilista de alta costura. “Pierre Cardin, ele, que vendeu seu nome para papel higiênico. Em que ponto alguém perde sua identidade?”, assinalava em 1995 o então influente jornal Women’s Wear Daily, que apenas uma década antes tinha calculado seu volume anual de negócios em extraordinários 10 milhões de dólares (52 milhões de reais). Essa polêmica acabou prejudicando Cardin em 2011, quando quis vender a marca, que ele acreditava valer 1 bilhão de euros (6,3 bilhões de reais), enquanto o setor não dava nem um quinto desse valor por ela. Não houve comprador, claro. “Tenho um nome e tenho de tirar proveito dele”, limitou-se a dizer o estilista.

Com o nome de Pierre Cardin, parecia que dava para fazer de tudo (exceto calças jeans, que ele detestava, certamente porque não as inventou). Embora Marlene Dietrich já tivesse alertado o estilista quando ela reapareceu em Paris, em 1973, no Espace Cardin − o antigo Théâtre des Ambassaseurs, transformado, dois anos antes, em palco para suas extravagâncias, que ele manteve ativo até 2016: “Concentre-se em passar calças e largue o teatro”. O conselho encontrou ouvidos surdos. Em 1974, Pierre Cardin se tornaria o primeiro estilista a aparecer na capa da revista Time, com toda sua teatralidade: nu, coberto apenas por uma de suas toalhas, exibindo um barbeador elétrico − com o logotipo da casa bem visível − e ladeado por uma das cadeiras da linha de móveis que lançaria em breve, envolvendo pesos pesados do design industrial, como Maria Pergay, Serge Mazon, Giacomo Passera e Chistian Adam. Essa era a visão de mundo de um artista que submetia a forma à sua função, ao sentido de utilidade. “Meus objetos são módulos nos quais o corpo se move”, reza outro de seus singulares aforismos.

Formado na adolescência em alfaiatarias de Saint-Étienne e Vichy, Cardin conheceu o renascimento da alta costura após a Segunda Guerra Mundial auxiliando Paquin e Schiaparelli, antes de entrar no ateliê de Christian Dior, em 1946. Diz a lenda que ele havia sido rejeitado por Balenciaga, mas, em troca, participou do surgimento do revolucionário New Look da Dior, um ano depois. Há até quem lhe atribua a autoria da silhueta Bar, com aquela amplitude de quadris que depois arredondaria, já por sua própria conta e risco, em 1953 com o vestido bolha (curiosamente, seguindo o mesmo padrão descolado do corpo que Balenciaga introduziu com seu vestido saco).

De qualquer forma, seu ideal era outro, tão afastado daquele velho ofício que suas primeiras ações foram abrir mercado no Japão (outro pioneirismo) e apostar no luxo sem ornamentos para a moderna sociedade de consumo. Em 1959, aliado à loja de departamentos parisiense Printemps, criou uma coleção feminina na qual os conjuntos com jaqueta de amarrar (la tunique) deram um novo significado à confecção ao ser produzidos em série. Surgia o prêt-à-porter, ou seja, o pronto para vestir. E explodia a Câmara Sindical da Alta Costura. A partir daí, o delírio nas asas da corrida espacial e da Guerra Fria.

“Acho que minhas iniciativas nunca foram equivocadas. Todas as experiências que empreendo são fruto da minha insatisfação, preciso que minha vida seja interessante e quero fazer avançar esta profissão, da qual tanto gosto”, diz em um fragmento de 1966 incluído em House of Cardin, o documentário que Todd Hughes e P. David Ebersole, colecionadores de sua obra, dedicaram a ele em 2019. O fato de que, de uma forma ou de outra, tenha conseguido manter o pulso durante seis décadas confirma que não, não estava equivocado ao querer tirar proveito de seu nome, associado a uma maneira de entender a moda que vai além do clichê das trajes de vinil e acrílico para colonizar o espaço sideral −- uma ideia que, em meados dos anos 1960, parecia ser viável comercializar. “Meu destino é o amanhã”, proclama em outro momento do filme. Hoje, a fórmula de negócios que ele criou (900 licenças de produtos com seu nome em quase 150 países) lhe dá, mais do que nunca, a razão.

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