RNA, a molécula que pode nos tirar desta pandemia

by @prflavionunes

Dentro de cada pessoa que lê estas linhas existe uma molécula frágil, de vida fugaz e origem desconhecida, sem a qual não poderíamos estar vivos: o RNA. As duas vacinas contra o novo coronavírus que mostraram maior eficácia até o momento se baseiam nesta molécula, especificamente em um subtipo conhecido como RNA mensageiro. Seu trabalho é transmitir a mensagem da vida contido no DNA e transformá-lo em todas as proteínas que nos permitem respirar, pensar, nos mexer, viver. Esta molécula é tão fundamental que se pensa que a vida na Terra pode ter começado com ela, mais de três bilhões de anos atrás. Agora é uma das favoritas para começar a tirar toda a população humana da pior pandemia do século XXI.

As duas vacinas mais avançadas, a do consórcio Pfizer/BioNTech e a do laboratório Moderna, mostraram uma eficácia superior a 94%.

Um dos maiores enigmas da ciência é como a vida apareceu na Terra há mais de três bilhões de anos. Há várias teorias, mas todas elas passam de uma forma ou outra pelo RNA. A definição mais básica de algo vivo é que precisa ser capaz de se reproduzir sozinho e, portanto, poder evoluir. Alguns cientistas demonstraram que o RNA pode copiar-se a si mesmo e evoluir por si só. É possível que esta molécula tenha sido a primeira entidade viva na Terra.

Qualquer vacina é uma simulação de uma infecção. Seu objetivo é provocar uma resposta do sistema imunológico a um agente patogênico sem deixar que este cause a doença. As vacinas da Moderna e da Pfizer/BioNTech usam uma técnica diferente das convencionais, baseadas em vírus completos atenuados ―caso do sarampo―, desativados ―como a vacina da gripe― ou em fragmentos destes. As vacinas de RNA mensageiro usam as células do corpo como biorreatores para que produzam cópias da proteína S do coronavírus, e que estas sejam localizadas pelo sistema imunológico.

Eis aí uma das diferenças mais importantes entre as vacinas da Moderna, a da BioNTech e as de outras empresas e centros de pesquisa que desenvolvem imunizações similares.

Esta linha também inclui células de memória capazes de recordar os vírus e reativar o alerta imunológico meses ou mesmo anos depois.

O médico e imunologista Ugur Sahin, fundador da BioNTech, destaca a importância de que a vacina seja direcionada especificamente às células do sistema imunológico, o que lhes permite obter resultados semelhantes aos da vacina da Moderna usando apenas aproximadamente um terço da dose. “Uma dose mais baixa significa que a vacina é mais segura e lhe permite fabricar mais doses para cobrir a demanda mundial”, explica.

A vacina do câncer

Esse cientista de origem turca e o resto da sua equipe foram um dos pioneiros mundiais no estudo de uma vacina de RNA em humanos. Foi em 2017, para tentar tratar o câncer. A ideia era desenvolver uma vacina específica para cada paciente, como se seu tumor fosse um vírus.

A Moderna também surgiu como empresa para desenvolver esse tipo de vacinas personalizadas, e há uma terceira companhia muito adiantada neste campo, a alemã Curevac. Todas, além disso, desenvolvem imunizações contra outros agentes patogênicos como a raiva, o zika e o citomegalovírus, um agente patogênico que pode produzir surdez, atraso mental e outros problemas graves em uma fração dos bebês que nascem infectados.

“As vacinas de RNA podem revolucionar a medicina”, afirma Norbert Pardi, pesquisador da Universidade da Pensilvânia (EUA). Se finalmente essas vacinas demonstrarem eficácia, sua aprovação pode marcar o começo de uma nova era na biomedicina. Esta mesma técnica pode ser aplicada a muitas outras infecções virais, ao câncer e a doenças raras.

A rapidez com que podem ser desenvolvidas é impressionante. A Moderna levou 42 dias para ter um RNA mensageiro candidato a vacina depois que a China publicou a sequência genética completa do SARS-CoV-2. Em comparação, leva-se uma média 10 anos para desenvolver uma vacina convencional. Isto faz que o RNA mensageiro seja ideal para desenvolver uma imunização rápida contra futuros vírus pandêmicos de rápida expansão.

A sequência dos RNAs mensageiros é escrita em um computador e depois produzida de forma química, sem necessidade de usar células, o que pode sair mais barato se estas vacinas afinal derem certo e for necessária ampliar a tecnologia para a escala de produção.

O RNA pode ser mais seguro que outras vacinas baseadas no DNA, em proteínas ou em vírus completos. Esta molécula por si só não é infecciosa e é incapaz de se integrar ao nosso DNA, o que poderia causar mutações perigosas, transmitidas de geração em geração. Há atualmente 50 ensaios clínicos em andamento para provar a eficácia dessa classe de vacinas contra tumores de todo tipo, incluídos os casos mais graves em que há metástase. Também há quase 20 vacinas em fase de testes contra infecções virais como a gripe, o vírus do HIV, o zika e outras.

A grande pergunta sobre estas vacinas é quanto dura a imunidade gerada. “Se as vacinas de RNA mensageiro contra a covid-19 protegerem durante dois ou três anos já seria satisfatório, porque nos permitiria controlar a epidemia”, opina Felipe García, pesquisador do Hospital Clínico de Barcelona, que participa de um consórcio espanhol de desenvolvimento de uma vacina de RNA mensageiro contra o novo coronavírus. Ninguém sabe a duração da imunidade que estas vacinas geram porque simplesmente são muito novas. Se finalmente forem aprovadas, será preciso esperar anos para conhecer sua efetividade no tempo, por isso os ensaios clínicos vão continuar pelo menos até 2022.

Por enquanto não há nenhuma vacina de RNA mensageiro aprovada contra nenhum tipo de vírus ou doença. Seus resultados contra o câncer foram muito menos claros do que com a covid-19. As vacinas de RNA contra o câncer parecem seguras e conseguem frear o avanço dos tumores, mas só em uma fração reduzida de pacientes. No entanto, aqueles que respondem à vacina podem ficar sem o câncer por até três anos e meio.

Há duas descobertas científicas recentes sem as quais estas vacinas não seriam possíveis. A primeira data do final da década passada, feita por Katalin Karikó, bioquímica de origem húngara que atualmente trabalha para a BioNTech, e Drew Weissmann, da Universidade da Pensilvânia (EUA). Eles desenvolveram um RNA mensageiro modificado que inclui uma pequena alteração química em sua fórmula que o torna muito mais digerível para o sistema imunológico, facilitando que a molécula chegue intacta aonde tem que chegar. Ainda assim, injetar esse RNA sozinho não surtia grandes efeitos. A partir de 2015, Karikó, Weissmann e Pardi desenvolveram vacinas que protegiam a sequência do RNA dentro de uma nanopartícula feita de lipídios (gordura), o que permitia levar a carga de forma muito mais eficiente até as células. A formulação dessa bolha e a sequência exata do RNA modificado são fundamentais para o sucesso destas vacinas. Cada empresa tem sua própria fórmula, e nela estão as chaves de sua eficácia.

Perguntas por responder

A grande barreira para estas vacinas é a necessidade de preservá-las a temperaturas de até -80o C. Levar milhões de vacinas assim a países com uma cadeia de frio deficiente ou inexistente é um desafio que a humanidade nunca enfrentou.

A tecnologia para que estas injeções se mantenham a temperaturas factíveis já existe. A Moderna anunciou que sua vacina suporta até um mês a temperaturas típicas de uma geladeira comum, e Sahin explica que sua equipe está trabalhando numa nova formulação que se mantenha estável a temperatura ambiente.

“Nossa vacina de RNA mensageiro contra a covid-19 aguenta a 5o C durante pelo menos três meses”, garante Marie Fotin-Mleczek, diretora-técnica da Curevac, uma empresa alemã nascida em 2000 na Universidade de Tübingen. Sua vacina obteve resultados promissores nos testes em humanos e deve começar a última fase de testes para demonstrar sua eficácia. A União Europeia já definiu a compra de 225 milhões de doses dessa vacina se ela afinal funcionar, o que se somaria às já encomendadas à BioNTech, AstraZeneca, Sanofi, Janssen e talvez Moderna. Se estas vacinas finalmente forem aprovadas e se mostrarem efetivas, será “o começo de uma nova era”, afirma Mleczek, especialista em imunologia. “A formulação destas vacinas é muito fácil e rápida e elas podem ser aplicadas praticamente a qualquer agente patogênico, de forma que poderíamos desenvolver vacinas multivalentes para a gripe, a covid e outros vírus, tudo em um”, explica.

Há outro possível fator limitante: o preço. As vacinas da Moderna (preço equivalente a 140 reais) e BioNTech (92) são pelo menos cinco vezes mais caras que a desenvolvida em parceria pela Universidade de Oxford e o laboratório Astrazeneca, por exemplo. Como referência, todas as vacinas aplicadas todos os anos na África têm um preço conjunto por pessoa de aproximadamente quatro dólares (20 reais). “As vacinas de RNA nos tirarão desta pandemia, mas só junto com as outras, incluídas as mais convencionais. Mas as de RNA são imbatíveis na rapidez de desenvolvimento, o que é muito importante em pandemias”, observa Felipe García, do Hospital Clínico de Barcelona.

A fabricação em massa destas vacinas é possível. “As técnicas que atualmente usamos para produzir estas vacinas no âmbito acadêmico são facilmente ampliáveis em escala, então é factível poder produzir doses para 10 bilhões de pessoas em um ou dois anos”, afirma Cristina Fornaguera, pesquisadora do Instituto Químico de Sarriá, em Barcelona. Em 2016 sua equipe colaborou com a Moderna na formulação de vacinas de RNA. Junto a Salvador Borrós, desenhou vacinas liofilizadas (desidratadas) de RNA que permitem a conservação a 4o C.

“Estes candidatos a vacina contra a covid foram desenvolvidos em um tempo recorde e com um esforço que não tem precedentes na história. Se forem adiante, estarão abertas as portas a toda uma nova categoria de fármacos”, diz Ion Arocena, diretor da Associação Espanhola do Bioempresas (Asebio). “Neste ponto é preciso recordar que empresas como a Curevac receberam 300 milhões de euros [1,8 bilhão de reais] do Governo alemão para o desenvolvimento de sua vacina.”

O futuro: edição genética do RNA

Além dos fármacos, o RNA pode dar à humanidade um maior controle sobre seu destino como espécie. Em 2011, foi descoberto como reescrever o genoma de qualquer ser vivo graças à edição genética CRISPR. Esta tecnologia revolucionária funciona apenas com o DNA, e isto significa que faz mudanças permanentes no livro da vida. Por isso agora um número crescente de laboratórios e empresas procura uma forma de editar o RNA, pois não gera estes riscos.

Embora as técnicas para reescrever o RNA ainda engatinhem e só seja possível fazer mudanças pontuais de uma letra genética por outra, suas aplicações são muito interessantes: uma só mudança de uma letra do RNA poderia evitar doenças raras como a distrofia muscular. Mais adiante, desenvolver tesouras que cortem o RNA poderia permitir a criação de um tratamento capaz de aniquilar 80% dos coronavírus conhecidos e potencialmente muitos outros vírus cujo genoma é feito desta molécula. De fato, esta é uma grande diferença entre as coisas vivas e as não vivas: todos os seres vivos do planeta se baseiam no DNA para viver e se reproduzir, mas há muitos vírus, incluído o SARS-CoV-2, que são feitos só de RNA. Por isso precisam entrar em outros seres vivos e sequestrar seu maquinário biológico para se multiplicar.

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