Como o Mercado Livre, maior empresa da América Latina, surgiu na Argentina

by @prflavionunes

O MercadoLibre Inc. (ou Mercado Livre, em português) grupo argentino de e-commerce, é uma das empresas que não veem crise em 2020. Com receita líquida de US$ 1,1 bilhão no terceiro trimestre, aumento de 85% em relação ao mesmo período do ano passado, e mais de 200 milhões de itens vendidos no período, a empresa já tinha motivos de sobra para comemorar – mas quer ir além. A companhia investe na própria frota de aviões para melhorar sua qualidade logística no Brasil e, nesta segunda-feira (9), recebeu autorização do BC para operar como instituição financeira, decisão que abre espaço para consolidar a fintech da companhia (Mercado Pago), que já alcançou US$ 11 bilhões em volume de pagamentos, alta de 142% em relação ao mesmo período de 2019. 

De acordo com um estudo do Banco de Compensações Internacionais (BIS), a América Latina é um local em que a proliferação de fintechs cresce de forma acelerada: de 2017 a 2019, o investimento no setor aumentou mais de 100%. O Brasil é destaque absoluto, com mais de 50% dos acordos realizados, seguido por México (22,7%), Chile (9,1%), Colômbia (8,2%) Argentina (6,6%) e Peru (1,4%). Ou seja, a decisão colabora para aumentar ainda mais o valor de mercado da companhia, atualmente em US$ 60,6 bilhões, de acordo com dados divulgados pela consultoria Economatica.

“Um dos fatores críticos para esse crescimento foi o investimento em centros de distribuição e logística próprios, sem depender de outros agentes. Tecnologia, automação, inovação, conexão de canais e a proximidade dos centros de distribuição dos clientes, ideia muito similar à utilizada pelo WalMart, contribuíram de forma significativa para tornar o Mercado Livre quem é, hoje. Além disso, o investimento numa logística eficaz trouxe resultados. Hoje, eles têm cerca de 4 mil funcionários e operam em 19 países; a Netflix opera em 190 países e tem 2.500 funcionários, aproximadamente. Veja o tamanho do compromisso com o trabalho a partir daí”, explica Murillo Dias, professor da FGV.

A relação entre gigante com DNA argentino e o Brasil existe desde a fundação da empresa: no mesmo ano em que começou a operar em seu país de origem, o Mercado Livre também iniciou suas operações por aqui, além de começar no Uruguai e México. Com uma combinação de oferta de tecnologia, inovação contínua e investimento massivo em logística, o casamento de longa data com os brasileiros deu certo. Segundo dados divulgados no terceiro trimestre deste ano pela companhia, mais da metade (55%) da receita da empresa vem do mercado brasileiro.

Com tamanho sucesso no Brasil, responsável pelo maior PIB da América Latina, uma questão surge: afinal, como a maior empresa da América Latina não é brasileira? 

Uma série de fatores interfere nessa discussão. Primeiro – e mais óbvio – a própria nacionalidade do fundador, Marcos Galperín. Argentino, o executivo teve a ideia de fundar a companhia enquanto cursava um MBA na Universidade de Stanford. Até aí, não há muito o que fazer: poucas são as empresas que se arriscam a abrir a primeira filial de seus negócios fora de seu país de origem, onde já conhecem aspectos políticos, culturais e tributários de longa data.

Educação

Em segundo lugar, educação. Apesar de a especialização e a formação de Galperín terem sido cursadas nos Estados Unidos – o que, é claro, colabora para trazer certa energia de ‘Vale do Silício’ para seu país de origem – a Argentina investe desde o fim do século 19 em educação básica para sua população, mesmo com um cenário macroeconômico tão adverso, permeado por recessão e altos índices de inflação.

Para ter uma ideia do impacto que o investimento contínuo de longo prazo, dados divulgados pela BBC no último ano mostram que nossos vizinhos têm praticamente toda a população acima de 15 anos alfabetizada – índice que é de 93% no Brasil. Além disso, a expectativa de escolaridade média por lá é de 17,4 anos, enquanto no Brasil é de 15,4.

“A educação formal contribui para o empreendedorismo, sem dúvida. Hoje, trazer uma nova empresa para o mercado, inovar, depende de saber conceitos básicos de diferentes disciplinas, como química, matemática, além de ter uma visão sistêmica. É algo cada vez mais complexo, sem dúvida, mas a educação estruturada ainda é vista como um dos pilares para poder fomentar esse ímpeto nas pessoas”, afirma Fernando Ribeiro, professor do INSPER.

Burocracia e Investimentos

De forma geral, o ambiente de negócios da latino-americano oferece uma vantagem importante em relação ao Brasil: a economia de tempo com a burocracia de taxas e impostos. De acordo com o relatório Doing Business, do Banco Mundial, empresas brasileiras gastam 1.958 horas ao ano (o equivalente a assistir ao filme Pulp Fiction 652 vezes) com papéis para pagar impostos e contribuições.

Nos demais países da América Latina, essa média é de 332 horas. De certa forma, o Brasil parece dar os primeiros passos para correr atrás do prejuízo. Segundo o mesmo relatório, o fato de acelerar o processo para criar empresas – reduzindo tempo – e a redução de custos de certificados digitais contribuem positivamente para o ambiente empreendedor do país.

Ainda assim, alguns fatores importantes travam o país na corrida pelo fomento consistente à inovação. Um deles é a ausência de políticas públicas destinadas a gerar mais crédito para a inovação e a tecnologia. Por exemplo: recentemente, a Argentina aprovou um projeto de lei que oferece incentivos fiscais na próxima década para empresas de tecnologia conseguirem expandir no país.

Enquanto isso, no Brasil, foi instituída a Política Nacional de Inovação, que aborda uma estratégia para fazer o setor crescer no país, além de acelerar os pedidos de patente – de caráter mais técnico, a medida deve afetar principalmente as universidades, com a revisão de currículos. Não deixa de ser um passo, é claro, mas o componente financeiro – e especialmente o crédito – é um fator essencial para promover a inovação no país.

“Falta uma estratégia bem definida do Estado pra apoiar essa expansão, com revisão de regulações e incentivos fiscais, por exemplo. Hoje, isso está muito nichado. Por exemplo, no Agronegócio, existe muito investimento na Embrapa, que gera inovação e isso se transmite rapidamente para o setor privado, agregando valor. Mas, de forma geral, as universidades brasileiras são capazes de formar cidadãos inovadores, porém existe uma dificuldade muito grande de transformá-las em produtos para que cheguem realmente à prática”, diz Miguel Huertas, professor da Universidade São Judas.

Para ter uma ideia da importância desse tipo de investimento, é possível pegar exemplos de nações líderes em inovação. Nos anos 1990, o governo norte-americano investiu 3 bilhões de dólares para financiar o Projeto Genoma; na Alemanha, 92 bilhões de euros são investidos anualmente em pesquisa, com participação do setor público e de empresas.

No Brasil, o gasto com pesquisa e desenvolvimento aqui cresceu 6% ao ano entre 2000 e 2015 – ou seja, passaram de 1% para 1,3% no período. Os gastos, por aqui, não surtiram tanto efeito, e grande parte disso pode ser direcionado à demora para se registrar e obter patentes no país. Atualmente, o país é o campeão em atrasos para realizar essa atividade, com duração média de 5,8 anos. Quase um terço dos pedidos ainda demora quase dez anos para ser analisado.

Com as dificuldades, o país está longe de tomar a liderança em rankings globais de inovação. De acordo com a última edição do Índice de Inovação 2020, o país ocupa a 62ª posição entre 131 países analisados – entre eles, México, Chile e Costa Rica. Ainda assim, o tamanho de seu mercado consumidor desperta atenção e coragem de empreendedores que apostam em tecnologia no país.

Além do destaque óbvio do setor financeiro, o varejo digital se destaca, com companhias 100% nacionais como Magalu, que comprou a Netshoes (outra companhia famosa pelo crescimento no meio digital) no último ano. Ambas têm raízes familiares, é verdade, mas conseguiram se destacar em meio ao quadro geral, inseridas em um setor que faturou 33,4 bilhões de reais no terceiro trimestre deste ano, aumento de 85,1% em relação ao mesmo período do ano passado. 

Por outro lado, a indústria – extrativa e de transformação – é o setor mais afetado em termos de investimentos em inovação, mesmo antes da pandemia começar. De acordo com dados da Pesquisa de Inovação (Pintec), com dados analisados entre 2015 e 2017, o percentual da receita investido em inovação pelas companhias do setor passou de 2,12% em 2014 para 1,65% há três anos. Sob uma perspectiva geral, de acordo com o ranking, mais de 80% das empresas entende que os riscos econômicos dificultaram os investimentos e, para 65,5% delas, a falta de pessoal qualificado foi um empecilho para atingir esses objetivos.

Como resolver?

Em um país em que mais de 9 milhões de crianças e adolescentes vivem em extrema pobreza, segundo dados da Abrinq, formar líderes do futuro depende de garantir o básico para que possam, primeiro, sobreviver. Investir em educação básica de qualidade e faciltiar o acesso ao crédito para pequenos empreendedores são propostas de longo prazo, mas que podem ajudar o país a ter resultados consistentes em sua jornada rumo à inovação.

Mais do que direcionar esforços e recursos, é necessário estabelecer objetivos claros para os investimentos – tanto no setor público como no privado. Especialmente no aspecto macroeconômico, o governo pode unificar melhor os esforços para fomentar a criação de propriedade intectual, bem como o surgimento de grandes empresas com potencial global, como o Mercado Livre.

Esses podem ser alguns caminhos para ajudar a mitigar os efeitos da ausência de políticas totalmente dedicadas a promover a inovação de forma contínua no país – algumsa delas, inclusive, reforçando o caminho do atraso, como a lei de reserva de mercado, instituída no país em 1984.

Muito ainda precisa ser feito, é verdade, mas pequenos passos podem ser comemorados: recentemente, a InovAtiva Brasil, iniciativa do governo federal, foi eleito o melhor ecossistema para startups no país. Além disso, hubs de inovação – como o InovaBra, do Bradesco, e o Cubo, do Itaú – são passos importantes para que a integração entre boas ideias e novos produtos sejam colocadas em prática de forma acelerada.

Fonte: Exame

Pr. Flávio Nunes

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