Por que Califórnia escolheu priorizar trabalhadores agrícolas na vacinação

by @prflavionunes

Castigado pelo sol, o vale desértico atrás das montanhas de San Jacinto é mais conhecido por um festival anual de música que atrai cem mil fãs por dia e por uma série de cidades resort que são oásis exuberantes, aonde o pessoal bem de vida vai para jogar golfe, tomar banho de sol e festejar. Mas, um pouco além das piscinas azul-turquesa de Palm Springs, mais de dez mil agricultores cuidam de algumas das maiores culturas de tâmaras, legumes e frutas dos EUA.

Esse grupo, basicamente composto por gente que imigrou ilegalmente para os Estados Unidos, sofreu o peso da pandemia do coronavírus na Califórnia: em algumas áreas, até 40% dos trabalhadores que fizeram teste para o vírus obtiveram resultado positivo. O reverendo Francisco Gómez, da igreja de Nossa Senhora de Soledad, em Coachella, disse que sua paróquia tinha uma média de dez enterros por semana. “Estamos falando de uma situação apocalíptica”, afirmou.

Acabar com a propagação do vírus pela região agrícola é um dos maiores desafios nos EUA. Os imigrantes sem documentos são notoriamente cautelosos em se registrar em programas governamentais ou em se reunir em locais públicos de vacinação, e a ideia de vacinar quem está nos EUA ilegalmente antes de outros americanos tem estimulado o debate.

Mas um esforço histórico está em andamento no Vale de Coachella, visando trazer a vacina diretamente para os campos. Milhares de trabalhadores agrícolas são levados a clínicas temporárias de vacinação bancadas por produtores e administradas pelo Departamento de Saúde do condado.

O Condado de Riverside é o primeiro dos EUA a priorizar em grande escala os trabalhadores agrícolas na vacinação, independentemente de sua idade e das condições de saúde. Pesquisadores de saúde pública, entretanto, dizem que esses programas precisarão se expandir significativamente para ter alguma chance de acabar com uma das maiores ameaças à estabilidade do fornecimento de alimentos do país.

Centenas de surtos de coronavírus prejudicaram a força de trabalho em fazendas e centros de processamento de alimentos em todos os EUA. Pesquisadores da Universidade Purdue estimam que o teste de 500 mil trabalhadores agrícolas deu positivo para o vírus e pelo menos nove mil morreram por causa disso.

No Vale de Coachella, o programa de vacinação, que começou em janeiro, é o ápice de um esforço de meses para educar os trabalhadores agrícolas sobre a Covid-19, promovendo testes próximos a seu local de trabalho e incentivando-os a ficar em casa caso contraiam o vírus.

Em uma manhã recente, nos intervalos da colheita de cebolinha e alcachofra e da poda de parreiras, os trabalhadores seguiram para um armazém ao ar livre para receber a primeira dose da vacina da Pfizer.

Rosa Torres, que embala tâmaras, disse que nunca imaginou que poderia ser tão simples. “Deus respondeu às minhas preces”, comemorou Torres, de 49 anos, imigrante do México, que chamava a atenção por combinar camisa verde limão, boné de lã e máscara para marcar a ocasião. Ela, que é mãe solteira, afirmou que não podia se dar ao luxo de adoecer e faltar ao trabalho.

“Assim que soubemos que as vacinas estariam disponíveis, começamos a fazer planos”, afirmou Janell Percy, diretora executiva do Growing Coachella Valley, grupo de agricultores que está trabalhando com o Departamento de Saúde. Percy passa dias frenéticos fazendo malabarismos entre o condado, que disponibiliza as vacinas, e os produtores, que a informam do número de doses necessárias para imunizar sua equipe. Rosa Torres aguarda para ser vacinada em Coachella: iniciativa para vacinar trabalhadores rurais levantou debates

Os desafios para vacinar os trabalhadores agrícolas vão muito além das preocupações com seu status de imigração. A probabilidade de poder se inscrever on-line para a vacinação é baixa em uma população que muitas vezes não tem acesso à internet e enfrenta barreiras linguísticas. Muitos não conseguem chegar facilmente aos locais de vacinação em áreas urbanas porque não têm transporte confiável nem podem sair do trabalho no meio do dia.

“Esses trabalhadores vivem uma realidade estranha para a maioria, e são invisíveis para ela, mas produzem bilhões de dólares em alimentos distribuídos nos Estados Unidos”, disse Conrado Bárzaga, executivo-chefe do Desert Healthcare District.

Em março de 2020, o governo dos EUA classificou os trabalhadores agrícolas como essenciais – status que permitiu que continuassem trabalhando mesmo com lockdown, mas que também aumentou seu risco de contrair o vírus.

Os formuladores de políticas têm dificuldade de elaborar uma forma de protegê-los. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA aconselhou dar acesso antecipado à vacina aos trabalhadores agrícolas, mas os estados americanos adotaram uma série de abordagens.

No Condado de Riverside, defensores e produtores agrícolas têm recebido ligações de todos os EUA sobre o esforço da vacinação, que é considerado um modelo de como administrar vacinas a essa população.

“Eles não apenas priorizaram os trabalhadores agrícolas – eles desenvolveram uma estratégia abrangente e inovadora para garantir o acesso e a aceitação das vacinas nas comunidades de agricultores”, ressaltou Alexis Guild, diretor de política de saúde da Farmworker Justice, organização de defesa.

Mas alguns no Condado de Riverside, que se estende desde a periferia rural da classe trabalhadora de Los Angeles até o Mar de Salton, questionaram se esses trabalhadores deveriam furar a fila.

Em uma noite recente em Beaumont, a cerca de 30 minutos de carro do Vale de Coachella, pessoas que haviam conseguido agendar consulta para vacina mediante o processo disponível para a maioria dos residentes da Califórnia – principalmente aqueles com mais de 65 anos – esperaram por horas no carro, no estacionamento de uma escola local.

David Huetten, de 73 anos, contou que cadeirantes de sua comunidade de aposentados não tinham conseguido chegar a eventos de vacinação como esse. “Quando você tem idosos e professores que não foram vacinados, não dá para colocar os trabalhadores agrícolas no topo da lista”, opinou. Local de vacinação rural na Califórnia: os EUA têm aplicado mais de 2 milhões de doses da vacina contra a covid-19 por dia

Na cidade vizinha de Banning, Olga Rausch, garçonete aposentada de 73 anos que ainda não tinha conseguido se inscrever para a vacinação, questionou por que os trabalhadores agrícolas deveriam se imunizar antes de outros operários que também não podem se dar ao luxo de trabalhar de casa: “Tem muita gente vivendo amontoada. Por que garçons, lavadores de pratos e outros que trabalham em lojas não estão recebendo a vacina?”

A maioria das pessoas, no entanto, sentiu que fazia sentido priorizar esses trabalhadores. “Eles estão cuidando da nossa comida”, resumiu Don Tandy, veterano do Vietnã de 66 anos.

Como muitos americanos, alguns trabalhadores agrícolas temem que a vacina não seja segura, porque a desinformação proliferou nas redes sociais. Outros temem que a vacinação possa expô-los a órgãos de controle da imigração.

A Prime Time International, maior produtora de pimentões dos EUA, pediu aos trabalhadores que se inscrevessem para a vacinação em janeiro, e a primeira pergunta que estes faziam era: “A imigração vai estar lá?”, relatou Garrett Cardilino, diretor de operações de campo da empresa.

Para amenizar esse temor, o Condado de Riverside pediu a organizações de base que contatassem os trabalhadores agrícolas para tranquilizá-los. Montserrat Gomez, educadora da Todec, organização sem fins lucrativos que auxilia imigrantes, disse a um grupo de cerca de 30 trabalhadores, todos de máscara, reunido ao lado de uma plantação de espinafre na cidade de Winchester: “Não há chip para rastreá-lo; não há efeito negativo; você não perde sua fertilidade. A vacina já está disponível para você. Muita gente gostaria de ter essa oportunidade.”

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Fonte: Exame

Pr. Flávio Nunes

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