A vida belga do espanhol que tentou matar o papa João Paulo II

by @prflavionunes

O espanhol Juan Fernández Krohn relata sua tentativa de assassinato sem alterar sua expressão nem o volume de sua voz. Na verdade, demonstra um pouco de tédio: já contou a história centenas de vezes. Apesar disso, seu caso é pouco conhecido na Espanha. E, aos 71 anos, a memória lhe prega algumas peças. Ele faz longas pausas para lembrar detalhes do caso pelo qual seu nome está nos arquivos de jornais. Já se passou muito tempo desde aquele 12 de maio de 1982. Desde seu gesto em Fátima, Portugal, a expressão solene com que se refere ao seu objetivo fracassado de matar o papa João Paulo II, a quem acusava de ser um agente comunista infiltrado no Vaticano para destruir a Igreja católica.

Naquele dia, Krohn chega de trem ao santuário português, vindo de Paris. Carrega uma maleta onde guarda uma baioneta de 37 centímetros, a arma com a qual pretende cometer o crime. Perambula durante horas pela esplanada que o Pontífice deve atravessar, estudando o melhor lugar para atacá-lo. Quando a comitiva finalmente se aproxima, encontra o espaço que procura, infiltra-se no séquito vestido de sacerdote, camuflado entre os fiéis, e insiste para que lhe abram caminho para beijar o Papa. É detido a poucos centímetros de que a ponta afiada de sua baioneta rasgue a pele do religioso polonês.

Com o dobro da idade que tinha naquela ocasião, Krohn não se arrepende de nada. Vai quase todos os dias à biblioteca real de Bruxelas com um laptop, que usa para escrever um blog onde um dia elogia ditadores como Augusto Pinochet e Jorge Rafael Videla, e outro dia encampa teorias da conspiração sobre a participação israelense na explosão do Líbano. Sua ideologia radical é conhecida por algumas das pessoas que o rodeiam. “Tudo bem, Torquemada?”, cumprimenta-lhe, risonho, um homem com quem costuma cruzar entre as estantes.

No pátio da biblioteca, Krohn fala sobre o antes e o depois do atentado frustrado. De família adepta do regime franquista, foi um leitor precoce de jornais como Arriba, ligado à ditadura, que seu pai assinava. “Desde muito jovem eu tinha um retrato de José Antonio [Primo de Rivera] em meu quarto”, conta, referindo-se ao fundador da Falange Espanhola. Estudou Direito e Economia na Universidade Complutense, onde protagonizou alguns confrontos. “Colocaram grandes cartazes insultando José Antonio. Eu os arranquei, vieram para cima de mim e me empurraram contra uma porta de vidro. No dia seguinte, eu e o pessoal do meu grupo fomos nos vingar e armamos uma [briga] como nunca se viu na faculdade”, lembra. Apesar disso, considera que naquela época era “um jovem veemente, mas não violento”.

Depois de terminar seus estudos, rejeitou um emprego como economista e foi para a Suíça, onde passou quase quatro anos em Écône, nos Alpes, em um seminário onde foi ordenado sacerdote pelo controvertido arcebispo fundamentalista francês Marcel Lefebvre, excomungado pela Igreja católica em 1988, após protagonizar um cisma. “Era como uma academia militar. Levantávamos muito cedo, fazíamos excursões ao ar livre… Havia um ambiente de silêncio. Você só podia falar com seu colega na porta de sua cela”, conta.

Depois de passar dois anos na Argentina para fundar uma delegação de tradicionalistas − partidários, entre outras coisas, de celebrar a missa em latim e de costas para o público −, ingressou em um mosteiro perto de Paris, o lugar de onde partiria para tentar assassinar o Papa. A ideia tomou forma quando viu ao vivo pela TV o atentado que matou o presidente egípcio Anwar Sadat. “Houve um desfile militar que passou em frente à tribuna de autoridades, e de um dos veículos desceu o comando com fuzis-metralhadoras: bum, bum, bum. Aquele foi o detonador psicológico. Pensei: é tão fácil fazer um atentado?”, assinalou.

Sete meses depois, lá estava ele, em Fátima, tentando acertar onde o turco Ali Agca havia falhado um ano antes. “Concluí que a arma branca era a mais simples. Parecia-me mais simbólica, mais ritual e religiosa. Fui a Billancourt, um bairro na periferia de Paris, e comprei uma baioneta da guerra de 14 [a Primeira Guerra Mundial]. Antes de pegar o trem, treinei fazendo alguns exercícios, alguns gestos.”

Krohn não esperava sair vivo do ataque. “Estava cheio de fiéis. Fátima é um centro comercial à custa das aparições. Fiz o reconhecimento do lugar durante o dia todo. Estava nervoso, não sou de mármore, mas sem perder o controle. Fiz isso com intencionalidade suicida.” A realidade foi outra. Ele foi levado de lá algemado, entre gritos nos quais acusava o Papa de traição. Foi condenado a seis anos e meio da prisão em Portugal, dos quais cumpriu a metade. Na véspera de Ano Novo de 1984, punido, foi o único preso que não pôde sair para a ceia: definia-se como preso político e se negava a trabalhar.

Uma vez livre, escreveu um livro sobre o atentado, pendurou o hábito e, após vagar pela Europa, decidiu se estabelecer na Bélgica, onde se casou com uma belga da qual se separou poucos meses depois do nascimento de seu filho.

Nunca conseguiu administrar a vida como queria. Fez um mestrado sobre história do cristianismo e secularismo na Universidade Livre de Bruxelas. Mas, profissionalmente, isso não foi muito útil para ele. “Papel sem valor”, lamenta. Recorrendo ao seu diploma de Direito e mentindo sobre seus antecedentes penais, conseguiu entrar na ordem de advogados da cidade, onde desconheciam seu histórico. Não durou muito. Abriram um processo disciplinar contra ele por fazer comentários antissemitas em uma entrevista a um jornal. E, em meio à escalada da tensão, acabou dando um tapa no reitor, o que lhe custou a expulsão.

Com dificuldades até mesmo para pagar o aluguel, Krohn teve uma série de trabalhos precários, como faxineiro, boia-fria em uma plantação de produtos orgânicos e mecânico de bicicleta. Enquanto isso, seu nome voltava esporadicamente aos jornais. No ano 2000, furou o cordão policial durante uma visita do rei Juan Carlos I à Bélgica. Em vez de se dirigir ao monarca espanhol, com quem supostamente queria falar, enganou-se e correu em direção ao rei belga Alberto II, até ser abordado pelos serviços de segurança. Quase duas décadas depois, em 2019, voltou a ser notícia: o Conselho de Estado da Bélgica aceitou sua demanda e permitiu que ele voltasse a entrar na biblioteca real, à qual seu acesso tinha sido proibido ao ser acusado de assédio sexual em suas instalações.

Um extremista ou um desequilibrado? Em uma entrevista ao jornal belga La Dernière Heure, a primeira pergunta do jornalista foi: “Fernández Krohn, o senhor está louco?”. Tanto nessa ocasião como agora, sentado na biblioteca, responde a mesma coisa: passou nos exames psiquiátricos a que foi submetido, e prefere os rótulos de iluminado, excêntrico e fanático. “Para alguns, pode parecer bizarra ou escandalosa. Eu diria que minha vida é atípica.”

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