Cinco gerações de mulheres ajudando outras mulheres a trazer seus filhos à luz

by @prflavionunes

O dom de ajudar outras mulheres a parir é repassado como herança. Atender a esse chamado tão intuitivo quanto visceral é inexorável. Mas no que dependesse de Marcely Carvalho, de 49 anos, com ela seria diferente. Ser parteira tradicional não estava nos planos. Aquele universo parecia de extrema anulação. Ver a mãe sair tantas vezes de casa, em datas comemorativas, gerou repulsa. Até o dia em que, por acaso, ao levar um objeto esquecido no carro até a casa de uma grávida, Marcely viu pela primeira vez um nascimento. A conexão com a ancestralidade foi irrefutável.

A cena, com todos os detalhes, está guardada na cabeça. “Fui levar uma bolsa. Abri a porta, a casa tinha um tom amarelo, com folhas e esteira pelo chão. Comecei a andar, de curiosidade, e vi o casal se acalentando. Me chamou atenção o entrosamento deles. Encontrei minha mãe, e ela me pediu ajuda. A mulher sentia dor, mas parecia sentir também prazer. Vi minha mãe receber o bebê nos braços. Então, me tornei doula”. Doulas são mulheres que auxiliam, principalmente de forma emocional, mulheres durante a gestação e o momento de parir.

Mesmo acompanhando partos, Marcely resistiu por 10 anos em assumir a tradição familiar. Mais uma vez, levou um tropeço das circunstâncias. “Minha mãe viajou e eu acabei precisando assistir uma grávida. A bolsa estourou e eu disse: ‘quem vai pegar essa criança?’. Eu me recusei, mas uma comadre disse: você está pronta.” Faz 21 anos. Já são mais de 400 partos feitos desde o momento de assumir, para si, o chamado da ancestralidade.

Tradição passada por quatro gerações

Da tataravó para a mãe. Desta, para Marcely. Dela, tudo está se encaminhando para a filha Dandara, de 29 anos. As mulheres da família Carvalho estão unidas por um dom, trazer crianças ao mundo por meio dos saberes ancestrais. São parteiras tradicionais, mulheres carregando nos braços o legado de perpetuar a naturalidade de nascer sem intervenções medicamentosas ou mecânicas. Em um país em que mais de 55% dos partos são cesáreas, a segunda maior taxa do mundo segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), ser parteira tradicional é resistir.

A assistência materna realizada por parteiras tradicionais remonta a saberes anteriores aos processos de medicalização da saúde e hospitalização do parto. As parteiras aprendem o ofício na prática, ao auxiliar mulheres mais velhas, e costumam ser atuantes nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, em locais sem acesso de qualidade à rede hospitalar e assistência médica. Estima-se que existam mais de 60.000 parteiras em atuação no Brasil, 45.000 delas nas regiões Norte e Nordeste, de acordo com o PL nº 912, de 2019, que tem o objetivo de regulamentar a profissão no país.

Quem nasce na tradição, como Marcely, em algum momento da vida pode despertar para a profissão. As parteiras tradicionais realizam partos domiciliares. “Ser parteira é uma doação. É uma mulher ajudando outra mulher, muitas vezes onde não tem transporte, em lugares esquecidos.” Para ela, o parto não é um evento fisiológico, é algo sagrado. “É um momento de emoção e responsabilidades. Cada família tem uma história e seus mistérios. O medo traz emoções que criam obstáculos, e a parteira tem que saber lidar com eles”, conta Marcely, que com frequência —e mediante permissão das famílias— usa do místico, por meio do cachimbo xamânico, para promover o que chama de conexão. Foi assim que aprendeu com a mãe. Tudo faz parte do ritual do nascimento. “Para ver o bebê e como será sua chegada.”

Os partos domiciliares, que não estão inseridos no Sistema Único de Saúde (SUS) nem são custeados pela rede privada, têm sido impulsionados nos últimos anos pelo fortalecimento do movimento de humanização do parto. Marcely pondera. “É preciso fazer sentido para a família, ter um parto de baixo risco, fazer o pré-natal completo e respeitar os limites. Cesárea salva vidas. O parto domiciliar não é moda.” A procura crescente pelo modelo, por famílias de classes média e alta, levou Marcely a uma rotina exaustiva, de chegar a passar três dias longe de casa em um parto.

Dandara via tudo com os outros quatro irmãos e, às vezes, pedia para acompanhar. Fez curso de doula e de parteira tradicional. Já assistiu sete partos, mas ainda não decidiu se abraçará a profissão. A hesitação se repete na família. “A vida toda da gente foi nisso, tenho o entendimento de que não dá para deixar a tradição morrer. É uma influência muito natural, mas também sei que a minha vida, meu trabalho, hoje é puxada. Preciso identificar o momento certo de voltar e ser parteira, pois sei que quando entrar, é para mergulhar.”

A pandemia como renascimento do dom

Pela segunda vez na vida, Marcely Carvalho estava decidida a driblar o legado familiar. Um câncer de mama diagnosticado em 2018 a fez repensar toda a rotina, abrir mão dos cursos, das viagens a trabalho, dos partos. Deixou tudo para trás, desligou-se da instituição mantida pela mãe, a Cais do Parto, e passou um ano e meio em tratamento. Em janeiro de 2020, retomou aos poucos a vida profissional, apenas para ajudar amigas e comadres a darem à luz. Marcely, entretanto, não contava com o imponderável. A chegada da covid-19 impulsionou o desejo ou pelo menos a curiosidade pelo parto domiciliar.

As gestantes e lactantes foram inseridas pelo Ministério da Saúde, desde abril de 2020, no grupo de risco para complicações da covid-19. A pandemia interferiu em direitos garantidos como o de ter acompanhante durante todo o trabalho de parto, que passou a ser restringido em quadros de risco de transmissão, e a realização de visitas prévias à maternidade. Também provocou medo do contágio.

Não há dados sobre partos domiciliares em 2020. Até 2019, havia uma média de 18.900 nascimentos nesta modalidade, por ano, no Brasil, segundo dados do SUS. Porém, as buscas por parto domiciliar alcançaram picos em ferramentas como o Google, sendo justamente Pernambuco, onde vive Marcely, de acordo com o Google Trends, o Estado com maior pico de procura sobre o tema nos últimos 12 meses.

A pandemia reconectou Marcely ao universo das parteiras tradicionais de uma forma imprevisível. “Queria fazer apenas um parto por mês. Foi assim em janeiro e fevereiro, mas em março tive dois, em abril já foram três. As pessoas estavam com medo e passaram me procurar.” Aconteceu com a psicóloga Marney Boudoux, de 35 anos. Grávida da segunda filha, ela desistiu do parto hospitalar. “Estava planejada para um parto natural, porém no hospital, mas a pandemia começou a se agravar. Conversei com algumas enfermeiras e elas me falaram do cenário, da ausência do acompanhante, da equipe estressada.”

Um mês antes do parto, Marney decidiu ter Lara pelas mãos de Marcely. “O medo de ir ao hospital, pela questão do contágio, e a solidão do parto, me fizeram decidir. Eu tive uma gestação de risco habitual, com todos os exames e consultas. Me emociono só de lembrar, pois foi tranquilo, tinha as pessoas que amo próximas.”

Marcely fez 19 partos domiciliares em 2020. Depois do boom do primeiro semestre do ano passado, havia decidido frear, mas o destino voltou a comprometer os planos. Desta vez, para um parto inesperado, o do primeiro neto, Noah. “Ela não queria, por uma questão ética, mas eu nunca imaginei ter meu filho de outra forma. Para mim, o natural era ele nascer em casa, com a minha mãe”, conta a mãe da criança, a filha mais velha de Marcely, Débora Carvalho, de 30 anos. Noah nasceu em dezembro, dentro do quarto da avó, acompanhado pelos quatro tios, os pais e alguns amigos da família. Rodeado pela tradição. “Para mim, foi uma confirmação. A gente serve a outras famílias e quando se vê servindo à nossa, confirma, tudo parte de nós. Eu sou e devo seguir no partejar”, conclui Marcely.

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