Dez histórias e muitas perguntas sobre o violento século XXI

by @prflavionunes

Uma obra para promover diálogos. Essa é a motivação principal do recém-lançado 10 histórias para tentar entender um mundo caótico (Editora Sextante), livro do jornalista Jamil Chade e da advogada Ruth Manus, que propõe reflexões sobre a vida contemporânea e seus desafios. Amor, felicidade, corrupção, desigualdades e pobreza são alguns dos temas que norteiam os capítulos da obra, que, nas palavras de Chade, “é uma tentativa de romper com a surdez coletiva, que está muito presente hoje”.

Durante três meses da quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus, os autores trocaram reflexões que vão desde as muitas brechas de gênero na sociedade até o ataque à biodiversidade, com desmatamentos e queimadas, passando pelo peso que a contemporaneidade traz à saúde mental dos indivíduos. Organizados na forma de conversas descontraídas —mas que sempre apresentam evidências, fatos e números—, os 10 capítulos do livro partem de histórias pessoais de Chade ou Manus em diversos países do mundo, do México à Tanzânia, e levantam mais questionamentos do que deixam respostas. Não à toa, muitos dos capítulos da obra terminam com uma interrogação.

“Fazer perguntas é outro dos objetivos do livro. Não queremos dar uma receita sobre como viver no mundo atual, queremos mostrar: Essa é a realidade, vamos enfrentá-la ou camuflá-la com ideologias ou qualquer outro tipo de bandeira?”, diz Chade por telefone. O colunista do EL PAÍS afirma que inspirou-se em reflexões apresentadas em alguns artigos que escreveu para o jornal e que ganharam maior relevância nas trocas com a amiga advogada. Ambos tinham começado o projeto da obra antes da pandemia de covid-19, mas esse novo contexto reforçou algumas das ideias que já tinham, conta o jornalista. “A pandemia deu uma dimensão ainda mais explícita para questões de desigualdade e Justiça. Se antes as pessoas apenas não queriam vê-las e olhavam para o outro lado, a pandemia transformou-as em questões inevitáveis”.

Chade faz questão de destacar, no entanto, que o livro não é sobre a pandemia, mas sobre as “encruzilhadas” de um mundo que vive desigualdades insustentáveis. Ele não é do time dos otimistas que acreditam que, quando tudo passar, a humanidade estará reformada e transformada. “Acho que essa situação mostra o melhor e o pior da humanidade. Tenho a impressão de que, no futuro, quando contarmos essa história, será a história de como até as máscaras foram politizadas. Não é a história de um mundo unido para derrotar o vírus”, lamenta.

O jornalista lembra que a crise financeira de 2008 e 2009 gerou uma coordenação internacional “muito maior” do que a que existe hoje frente à crise sanitária. “O que o coronavírus faz é zombar das nossas fronteiras, das nossa bandeiras e dos nossos nacionalismos. Ele é um despertar no sentido de dizer que esse caminho que alguns insistem em tomar é suicida. O sistema fracassou”, acrescenta.

Chade vê esperança, no entanto, na geração que dá seus primeiros passos rumo à vida adulta e está disposta a mudar seu estilo de vida para preservar aquilo que deveria ser mais caro à humanidade. É a geração de Greta Thunberg e de outros que defendem o planeta. “Essa é a construção de uma insurreição de consciências que precisa acontecer. Não é só sobre construir um prédio com uma nova tecnologia, é ter uma população capaz de entender que o mundo é finito, que um gesto individual tem consequências, que o consumo individual também tem um impacto do outro lado e que a caridade não é a solução”, diz ele. “Criar base para que uma geração venha consciente disso tudo é a maior revolução que pode haver. Essa seria a revolução imparável”, acrescenta.

Leia, abaixo, um trecho de ’10 histórias para tentar entender um mundo caótico’:

Jamil: Assim como crescemos com histórias de bandidos e mocinhos, será que não existe uma forma de educar uma sociedade em que a Justiça não seja apenas uma revanche? Não se trata de abandonar a vítima. Jamais. Mas, pelo amor, não haveria um modelo mais sustentável de construir um sistema em que possamos evitar novas vítimas?

Para aqueles que nasceram sendo amados, o amor como pauta ou agenda política pode parecer fora de lugar. Mas para aqueles que nasceram abandonados pela família, pelo Estado ou pela sociedade, o amor como política poderia ser a garantia de um futuro.

Ruth: Jamil, isso me lembra um episódio que vivi com a minha sobrinha mais velha quando ela tinha 6 anos. Eu era estagiária no Fórum do Jabaquara, em São Paulo, e um dia ela foi conhecer “o trabalho da tia”. Curiosa, ela ia me perguntando o que era cada uma das coisas que via e eu ia tentando, sem grande sucesso, explicar coisas como o distribuidor de processos ou a sala da associação dos advogados. Eis que ela aponta para a única coisa que eu não queria que ela apontasse: a carceragem.

Expliquei, então, que aquela era “a sala” onde pessoas que estavam presas aguardavam o momento de irem conversar com o juiz. De todas as reações que eu imaginava que a Rita pudesse ter, esta era a única que eu não tinha previsto: “Como assim, tia Ruth!? Ainda existem pessoas presas no mundo!?”

Eu perdi o rumo. Não consegui dizer nada melhor do que “Sim, querida, ainda existe muita gente presa no mundo”. A decepção que eu vi nos olhos dela me inundou. Acho que esse foi um desses momentos em que crianças começam a se tornar um pouco adultos. Ela se limitou a dizer, uns minutos depois: “Eu achei que os homens já fossem capazes de resolver as coisas na conversa.”

É muito difícil explicar o mundo para uma criança. Especialmente porque o mundo, na verdade, costuma ser a contradição de tudo que tentamos passar a elas na educação que lhes damos. “Resolva as coisas na conversa” – mas há pessoas presas. “Não se pode agredir ninguém” —mas existem guerras (e existe até um “direito de guerra”). “Divida suas coisas com os outros” —mas 1% da população mundial detém mais do dobro da riqueza possuída por 6,9 bilhões de pessoas. “Seja educado, não faça grosserias” —mas figuras como Trump e Bolsonaro, líderes de dois dos maiores países do mundo, apare- cem nos jornais e na TV representando a verdadeira antítese de tudo isso.

O amor acaba caindo nessa mesma cilada. Colocamos o amor, em todas as suas facetas, como referência central da vida das nossas crianças e, quando elas se deparam com o mundo fora de casa, descobrem uma sociedade pautada em regras muito diferentes. Mas não precisava ser assim.

Jamil: Ao mesmo tempo, é essa geração que me inspira confiança e esperança. Recusar o amor no centro do debate nos custará caro demais. O preço pago por um mundo sem esse amor é insustentável. A insistência em recusar tal conceito dentro da política ou da comunidade não apenas nos torna insensíveis, mas também tenho a convicção de que nos impede de tomar as decisões mais sustentáveis. Sem amor, nossos esforços para nos liberarmos da opressão —seja ela qual for— estão fadados ao fracasso.

Claro, o amor também pode ser um instrumento de dominação e exclusão. Um ato de violência e de ir- racionalidade. Esse risco se corre quando essa paixão é canalizada apenas para criar e proteger uma comunidade de semelhantes. A história nos mostra que o amor à raça, à nacionalidade, a uma ideologia pode ter consequências devastadoras.

Mas não é a esse amor que eu me refiro. Foi construída a noção de que o conceito de amor se refere apenas ao casal, à família ou a um grupo. O que eu pro- ponho é que o amor não seja um assunto privado, que não esteja acorrentado.

Confesso que nunca entendi por qual motivo Martin Luther King é sempre lembrado apenas por sua frase “Eu tive um sonho”. Tão inspiradora como tal citação é esta: “Eu decidi amar.” Em 1967, ele escreveria algo tão poderoso quanto atual:

“Eu me preocupo por um mundo melhor. Estou preocupado com a justiça; estou preocupado com a fraternidade; estou preocupado com a verdade. E, quando alguém está preocupado com isso, nunca pode defender a violência. Pois através da violência você pode assassinar um assassino, mas não pode assassinar o assassinato. Através da violência você pode matar um mentiroso, mas não pode estabelecer a verdade. Através da violência você pode matar uma pessoa que promove o ódio, mas não pode matar o ódio através da violência. A escuridão não pode apagar a escuridão; só a luz pode fazer isso. E eu digo a você: eu também decidi ficar com o amor, pois sei que o amor é, em última análise, a única resposta aos problemas da humanidade.”

Trinta anos antes, Freud escreveu O mal-estar na civilização. Não vou entrar aqui nos detalhes de sua obra nem ousar debater o sentido que ele pretendia passar. Mas quero reter apenas uma ideia que ele traz ali: o amor como uma energia das mais subversivas e poderosas. Certamente ele pode ser destrutivo. Mas e se ensinássemos a usar esse fenômeno de uma maneira revolucionária? E se a unidade não fosse nem o casal, nem a tribo, nem a raça, mas sim o sentimento universalista?

Já sabemos de uma forma explícita que a era do mundo infinito terminou. Se a emergência climática era um sinal claro disso, a pandemia veio confirmar nossa irrelevância, nossa vulnerabilidade. São fenô- menos que zombam de nossas fronteiras, de nossas bandeiras.

Não estou propondo nem uma nova religião nem uma nova ideologia. Já temos bastante de ambas. O amor como prática revolucionária não é apenas sentimento, mas um plano de ação. Insisto: não acredito que isso seja algo inédito. O que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 senão uma carta de amor à humanidade?

A ideia é simples. Mas nos exige inverter uma lógica. Temos de abandonar a percepção que tanto ouvimos: que mundo deixaremos aos nossos filhos? Nada disso. O real desafio é nos fazermos uma pergunta muito mais desafiadora que essa: que geração vamos deixar ao mundo? Ou seja, que filhos estamos criando e de que forma eles vão assumir suas responsabilidades para não cometer os mesmos erros de outras gerações.

Eu vejo três princípios fundamentais na base dessa insurgência das consciências. O primeiro deles é o de educar com a finalidade de formar pessoas que se interessem por cuidar. Cuidar do cachorro, do irmão, dos avós, do vizinho, de um desconhecido, de um estrangeiro, da cidade, do país e de seus bosques, do planeta e de suas maravilhas. Um sistema que incentive a trocar o ego pelo eco.

O segundo é transformar a educação numa eterna busca da tolerância. Entender o que várias culturas dizem, descobrir novos significados para gestos, compreender por qual motivo uma religião dita certos dogmas, conhecer a história. Isso passa necessariamente pela humildade, não por criar mais canais de YouTube. Exige uma educação multidisciplinar, jamais unidimensional.

Será essa tolerância que permitirá que um indivíduo se sinta seguro e confortável diante do outro, dificultando o ódio, o medo e, portanto, o tribalismo como opção.

E o terceiro princípio é incentivar novas formas de justiça. Não se trata de ensinar a entregar roupas usadas para instituições de caridade alguns dias antes do Natal. Mas ensinar a não se conformar, a se indignar, a acreditar que se pode mudar o mundo, a sair às ruas pela liberdade, a se mobilizar, a saber que uma pessoa que dorme numa praça significa um crime, que uma pessoa faminta não é uma fatalidade e que a morte de um desconhecido é a morte da humanidade.

O eixo, no fundo, sofre um abalo. Paradoxal, a unidade passa a ser a humanidade em sua diversidade. Cada um de nós se define como humano. Mas, curiosamente, precisamos dos demais para comprovar que o somos. Ou seja, só existimos como força coletiva.

Quando Yuri Gagarin, em 1961, se tornou o primeiro homem a entrar em órbita, levava consigo o sonho e a loucura de séculos. Quando ele retornou, confessou que sua maior surpresa não foi ver a vastidão do universo, mas a beleza do planeta. Ele estava apaixonado pela Terra.

Ele não foi o único a entender que, ainda que sua missão fosse desbravar o cosmo, a maior descoberta que estava fazendo era de nossa própria casa, do “errante navegante”. Com base nos relatos dos astronautas, anos mais tarde, o filósofo Frank White cunharia o termo “overview effect”, uma reflexão sobre a visão do mundo de uma posição privilegiada e única.

Não estou sugerindo o fim do Estado-nação nem evocando John Lennon. Mas será que não existe nada maior? Será que nossa lealdade se limita a uma bandeira e a uma vida organizada na base de identidades construídas? O nacionalismo é o instrumento adequado? Será mesmo que nossa maior defesa como espécie é a fronteira? Ou seria ela nossa limitação?

Talvez o vírus invisível tenha nos dado uma última chance de despertar. Um último alerta antes de enfrentar um desafio existencial que nos é apresentado no século XXI. Se Gagarin foi ao espaço para entender que somos um só, agora foram o confinamento, o medo, o reconhecimento da vulnerabilidade que nos proporcionaram um daqueles momentos históricos de mudança cognitiva da consciência.

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