EUA e China entram em choque em seu primeiro encontro sob Biden e fazem recriminações mútuas

by @prflavionunes

O primeiro dia de conversações entre a China e os Estados Unidos no Alasca, as primeiras sob a presidência de Joe Biden, correu como se previa: com aspereza, pelo menos diante das câmeras. Frente a frente, em uma longa mesa no Hotel Captain Cook, na cidade de Anchorage, as duas delegações transformaram o que deveriam ter sido alguns minutos de ninharias protocolares em uma hora de intensa troca de recriminações. Na versão diplomática de uma guerreira dança haka maori, antes de entrar na labuta de verdade, cada parte estufou o peito, listou suas vantagens e relacionou suas queixas, para marcar território e tentar intimidar o oponente. Garantir que a imprensa visse isso e que o espetáculo alcançasse os verdadeiros destinatários: seus respectivos públicos nacionais.

O protocolo estabelecia que no início da sessão inaugural cada um dos dois chefes das respectivas delegações fizesse uma declaração de dois minutos. A parte do anfitrião começou: o secretário de Estado, Antony Blinken, alertou que nas três sessões de diálogo planejadas, os Estados Unidos abordariam as ações da China em Hong Kong, o tratamento da minoria uigur em Xinjiang, a situação em Taiwan, os ataques cibernéticos contra os Estados Unidos e as pressões econômicas contra os seus aliados. “Cada uma dessas ações ameaça a ordem baseada em leis que mantêm a estabilidade mundial”, disse o chefe da diplomacia norte-americana, não sem enfatizar: “Ter força não é o mesmo que ter razão”.

O conselheiro de Estado Chinês Yang Jiechi fez uso da palavra. Falou durante 16 minutos —mais outro tanto da tradução— para defender as conquistas de seu país na luta contra a pobreza ou a derrota do coronavírus e acusar Washington de “arrogância” em suas declarações na abertura da sessão. “Os Estados Unidos”, argumentou, “não representam o mundo. Só representam apenas o Governo dos Estados Unidos. Não acredito que a imensa maioria dos países do mundo reconheça que os valores universais que os Estados Unidos defendem, ou a opinião dos Estados Unidos, representem a opinião pública internacional.”

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Em vez de criticar a China, disse o conselheiro de Estado, a primeira economia mundial deveria resolver seus problemas “profundos”, inclusive os raciais. “Os Estados Unidos usam sua força militar e hegemonia financeira para exercer sua jurisdição a longa distância e reprimir outros países”, declarou Yang.

O ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi —hierarquicamente inferior a Yang e membro do Politburo, a segunda instância de comando do Partido Comunista—, tomou a palavra para continuar a lista de queixas e reclamar de que Washington impôs sanções contra 24 funcionários dos governos central chinês e de Hong Kong na véspera da reunião. “Não é assim que se deve dar as boas-vindas aos convidados, e nos perguntamos se os Estados Unidos tomaram essa decisão para tentar obter alguma vantagem em sua interação com a China, mas certamente é um erro de cálculo, que só reflete a vulnerabilidade e fraqueza dentro dos Estados Unidos”, opinou.

Quando parecia que tudo terminaria ali, e os assistentes começavam a conduzir a imprensa presente para fora da sala, para que a reunião pudesse continuar a portas fechadas, Blinken chamou os jornalistas para um novo depoimento, fora do programa, em uma ruptura insólita do protocolo. Um gesto que, por sua vez, Yang repetiu quando o grupo de repórteres saía de novo da sala.

Posteriormente, em declarações aos jornalistas de seus países, cada delegação acusou a outra de ter violado o protocolo acordado. Um alto funcionário dos EUA argumentou que a representação chinesa havia chegado “pronta para a encenação, focada mais em fazer teatro e armar um drama do que na substância”. Por sua vez, a legação chinesa denunciou que os Estados Unidos criaram uma situação “pouco hospitaleira” e contrária à etiqueta diplomática.

Que o confronto público tinha, acima de tudo, uma finalidade de criar uma imagem ficou demonstrado pelo fato de as conversas transcorrerem sem problemas nas sessões a portas fechadas. A primeira até durou mais do que as duas horas esperadas, de acordo com o alto funcionário dos EUA. Essas conversas foram “substanciais, sérias e diretas”, disse ele. “Nós as usamos, como pretendíamos, para expressar nossos interesses e prioridades, e ouvimos o mesmo de nossos colegas chineses.”

A cobertura da mídia nos Estados Unidos esteve à altura da superficialidade do desacordo: na primeira página digital do The New York Times, a cúpula do Alasca só mereceu um discreto terceiro lugar esta manhã, após notícias da pandemia e da matança de Atlanta, para onde o presidente Biden e a vice-presidenta Kamala Harris viajariam nesta sexta-feira.

De fato, em sua primeira reação oficial, uma porta-voz da Casa Branca minimizou a exposição das diferenças no Alasca, garantindo que Biden está ciente de que as relações bilaterais sempre serão muito competitivas, mas que ainda assim deseja trabalhar com Pequim em benefício dos interesses comuns. “Sabíamos que seria difícil”, disse a secretária de imprensa adjunta, Karine Jean-Pierre, enquanto Biden embarcava para Atlanta. O dia em memória das vítimas da matança em várias casas de massagens vai monopolizar a atividade oficial do presidente nesta sexta-feira.

Mas não se tratava somente de uma questão de imagem. A dureza do intercâmbio de acusações também reflete a profundidade das tensões entre os dois países, que durante o mandato de Donald Trump viveram os momentos mais difíceis de seu relacionamento em meio século por causa das disputas sobre questões comerciais, sanções tecnológicas e a situação em Xinjiang, Hong Kong e Taiwan. O atrito não dá sinais de abrandamento com a Administração Biden, que, embora tenha revisto toda a política em relação à China, mantém um viés semelhante ao de seu antecessor.

O objetivo do encontro é justamente lançar as bases para administrar a relação de rivalidade nos próximos quatro anos, de tal maneira que os dois países possam cooperar em questões de interesse comum, como a situação em Mianmar, os programas nucleares da Coreia do Norte e Irã, a luta contra a pandemia do coronavírus ou as mudanças climáticas.

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