Na corrida contra o colapso da covid-19, abrir leitos é a única e precária arma dos Estados

by @prflavionunes

“Estamos em guerra”, definiu o secretário da Saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn, nesta sexta-feira na habitual coletiva de imprensa feita pelo Governo João Doria desde o início da pandemia de coronavírus há um ano. O tom de urgência poderia ser interpretado apenas como uma hipérbole política, mas o cenário do qual o Brasil se avizinha está próximo de uma batalha decisiva, na qual o vírus tem se saído vencedor. A situação do país é crítica em praticamente todos os Estados ao mesmo tempo, o que impõe uma dificuldade adicional, já que a possibilidade de socorro entre fronteiras se torna mais remota. Sem um comando unificado do Governo Federal, gerido por um presidente que classifica a emergência sanitária como “mimimi”, governos das 27 unidades federativas tentam implementar medidas de restrição de circulação vistas como ineficazes por especialistas, temendo o desgaste político e financeiro de um rígido lockdown, e apostam em uma arma que logo se tornará finita: a criação de novos leitos para acomodar cada vez mais doentes. Levantamento feito pelo EL PAÍS mostra que em ao menos 17 Estados, a taxa de ocupação de UTIs para covid-19 supera os 80%, como já havia indicado um boletim da Fiocruz desta semana. Em dez deles, já passa de 90%. E em dois, de 100%.

Aviso aos leitores: o EL PAÍS mantém abertas as informações essenciais sobre o coronavírus durante a crise.

“Vamos continuar abrindo leitos e vagas dentro dos hospitais. Abriremos em qualquer local destes hospitais, sejam nos anfiteatros, nos ambulatórios, sejam nos corredores”, desabafou Gorinchteyn na coletiva desta sexta. “Vai ter paciente no corredor. O que nós não queremos é paciente desassistido”, afirmou ele. São Paulo nesta semana teve seu maior número de mortes por covid-19 desde o início da pandemia: 468, na última terça-feira. Há quase 1.000 pedidos de internação no Estado todos os dias, o que sobrecarregou a rede como nunca antes na crise. Mesmo com um acréscimo de 152% no número de leitos SUS (de 3.500, em 31 de março, para os atuais 8.839), a taxa de ocupação chega a 78,5% nas UTIs e a 60,9% nos leitos de enfermaria. E, apesar da relutância de Doria inicial, o Estado acabou voltando à fase mais rígida das restrições: apenas atividades essenciais poderão funcionar pelas próximas duas semanas, a partir deste sábado.

No Paraná, outro gestor também usou a coletiva de imprensa, na semana passada, para desabafar sobre a situação de seu Estado. “Nem se os leitos fossem infinitos” haveria capacidade de atendimento, disse Vinicius Filipak, diretor de Gestão em Saúde da Secretaria (Sesa). O Estado decretou toque de recolher, permitindo apenas serviços essenciais entre 20h e 5h, e chegou a dispersar com bombas de gás lacrimogêneo pessoas que desrespeitaram a ordem de deixar as ruas. Até esta quinta-feira, o Paraná mantinha 96% de suas UTIs de adultos para covid-19 ocupadas. Em janeiro, entre 40 e 45 pessoas esperavam diariamente por uma vaga de enfermaria ou de UTI em hospitais paranaenses. Na semana passada, este número passou para 500 pacientes. Na última terça-feira, 2 de março, chegou a 699. “Evidentemente todos os leitos estão além da capacidade máxima ofertada pelo Estado, mas os esforços estão sendo mantidos”, explicou ao EL PAÍS a pasta da Saúde, que em seguida falou sobre as limitações de seguir abrindo mais vagas em hospitais. “As ampliações de atendimento são finitas e não devem, de forma alguma, servir como argumento para deixar de se cuidar. As medidas de prevenção devem continuar sendo seguidas, estamos chegando cada vez mais no limite”, argumentou.

A região Sul é uma das afetadas atualmente pelo colapso hospitalar. Com mais de 96% de ocupação de seus leitos de UTI, Santa Catarina começou a transferir pacientes para o Espírito Santo na última quarta-feira, 3 de março, e prevê a ativação de mais 200 leitos. O Rio Grande do Sul, que possui uma taxa 101,9% de ocupação de leitos públicos e privados de UTI, prevê abrir mais 40 vagas de Unidades de Terapia Intensiva para covid-19 no Estado. Os postos de saúde do Estado passaram a funcionar em horários estendidos, inclusive aos finais de semana, para desafogar hospitais. O Estado também reativou um cadastro de voluntários, na tentativa de contratar mais profissionais de saúde, e determinou que todos os hospitais ofereçam 50% dos leitos clínicos a pacientes com covid-19.

Há Estados, entretanto, que sequer trabalham com a possibilidade de colapso em suas redes de saúde, como explicitou Pernambuco ao EL PAÍS. Na quarta-feira, quando 92% de suas UTIs para covid-19 do SUS estavam ocupadas, o Governo pernambucano afirmou que mitigaria a crise com a contratação “nas próximas semanas” de mais 300 leitos de enfermaria e 150 leitos de UTI. No Rio Grande do Norte a situação é igualmente grave, com uma taxa de ocupação também superior a 92%.

Em entrevista ao EL PAÍS na quarta-feira, o médico e neurocientista Miguel Nicolelis já havia alertado sobre os limites da estratégia de seguir abrindo mais leitos. Em primeiro lugar, existe uma escassez de médicos e de enfermeiros. Além disso, explicou, “a velocidade de crescimento do vírus é exponencialmente mais veloz que a capacidade de criar, equipar e por gente no leito de UTI”. Nos cálculos de Nicolelis, é possível que o número de mortes registradas diariamente chegue a 3.000 nas próximas semanas.

Centro-Oeste

O Centro-Oeste se encontra em situação similar ao Sul, com seus quatro Estados com a ocupação de suas UTIs para covid-19 superior a 90% ou beirando esta taxa. Goiás, que já superou a marca de 96%, prevê ampliar a rede de atendimentos e suspender as chamadas cirurgias eletivas —medida também tomada pela Prefeitura de São Paulo nesta semana. O Distrito Federal, com uma de ocupação de 91,2%, avalia a abertura de dois hospitais de campanha com 200 leitos —o que o Estado de São Paulo também afirmou nesta sexta que fará. O Mato Grosso, com 88% de ocupação de UTIs do SUS, diz que não pode estimar até quando haverá vagas “pois o avanço da doença depende do comportamento da população em relação ao vírus”. A Secretaria da Saúde destacou a abertura de 90 vagas nos últimos 23 dias e o decreto de novas medidas de restrição à circulação. Por fim, o Mato Grosso do Sul não respondeu às tentativas de contato da reportagem. De acordo com o boletim epidemiológico do dia 4 de março, 94% das UTIs do SUS para covid-19 estavam ocupadas, enquanto na rede privada a cifra era de 89%.

Colapso no Norte

A situação segue bastante preocupante região Norte. Acre e Rondônia já atingiram 100% de ocupação de leitos de UTI. O Amapá, que tem 86% de ocupação, estima que em uma semana também não tenha mais vagas. No Amazonas, onde a falta de oxigênio chocou o mundo no mês de janeiro e que conseguiu transferir pacientes para outros Estados, a ocupação de UTIs voltada ao novo coronavírus ainda é alta: 80%. Já o Estado de Roraima registra 79% de lotação para esse tipo de leito e trabalha com a possibilidade utilização de 120 do Hospital Estadual de Retaguarda, além de requisitar os existentes na rede privada.

Em Rondônia, onde não há mais vagas em UTI e 86,3% dos leitos clínicos estão ocupados, o Estado tem registrado alta nos casos de contaminação pela covid-19 desde novembro de 2020. Desde janeiro, o número de óbitos aumentou 61,8% sendo que, no último mês, 630 pessoas morrem no Estado em decorrência do novo coronavírus. Desde o início da pandemia já são 2.944 óbitos registrados. Entre as medidas que vem sendo adotadas pelo Governo do Estado estão o “incentivo ao uso racional dos recursos e equipamentos para evitar a escassez”, incluindo o oxigênio e a transferência de pacientes para outros Estados.

No Acre, onde também não mais vagas para UTI Covid-19, já foram registrados 1.030 óbitos desde o início da pandemia. A marca de mais de 1.000 mortos, que foi atingida na segunda-feira, 1º de março, resultou em decreto de luto oficial por três dias pelo governador Gladson Cameli —que também foi diagnosticado com covid-19 na mesma data e faz acompanhamento médico em casa.

No Acre, embora os leitos clínicos para o coronavírus registrem uma taxa de 88,6% de ocupação e o Estado admita que não há possibilidade de transferência de pacientes, o funcionamento de setores não essenciais foi flexibilizado no dia 1 de março, liberando a abertura do comércio com 20% da capacidade. “Como outros Estados estão com o mesmo quadro de limite assistencial, só podemos recorrer ao Ministério da Saúde e/ou ajuda de outros países em melhor situação, que podem fazer doações. Não temos como transferir pacientes, pois nos demais estados não existem vagas”, afirma o Governo em nota.

No extremo Norte do país, o Amapá prevê atingir capacidade máxima de vagas em leitos em sete dias, segundo divulgação do Governo do Estado. O Estado registrou aumento de 7,2% nas mortes nos últimos 30 dias: foram 77 óbitos em uma população de 861.773 habitantes.

Embora o número de internados com o coronavírus tenha apresentado queda de 47,8% no mês de fevereiro em relação a janeiro, quando o Amazonas registrou o colapso da rede pública e a falta de oxigênio, a taxa de ocupação de leitos UTI e clínicos para covid-19 ainda é alta: 88% e 70%, respectivamente. Mais de 2.500 pessoas morreram nos últimos 30 dias, mesmo período em que o Governo do Estado tem flexibilizado, paulatinamente, o funcionamento de serviços não essenciais no Estado. Atualmente há autorização para funcionamento de comércio e shoppings de 9h às 15h até sábado e da indústria por 24h, observada a restrição de circulação de pessoas de 19h às 06h.

No caso do Tocantins, a Secretaria da Saúde se limitou a dizer que “alguns pacientes” aguardam leitos de UTI em hospitais ou UPAs por causa do pico pandêmico. Também disse que não pode especificar a taxa de ocupação de leitos “visto que o número é flutuante e se altera a todo instante”. Na página web indicada pela pasta, constam apenas os números de pessoas hospitalizadas com covid-19 —um total de 430 na manhã desta sexta-feira— em hospitais públicos e privados. De acordo com o boletim da Fiocruz, a ocupação no Estado chegou a 86% no dia 1º de março. A pasta ainda garantiu, sem especificar cifras, que o Governo está contratando vagas em hospitais privados e abrindo mais leitos públicos.

Medidas de restrição pouco eficazes

Nenhum dos Estados consultados pelo EL PAÍS fez referência a novas medidas de restrição mais duras. Especialistas consultados são unânimes em dizer que a contenção da crise passa por um lockdown nacional, que também reduziria viagens interestaduais, por exemplo, e que as medidas até agora apresentadas são insuficientes. Além da falta de colaboração do presidente Jair Bolsonaro, que faz chacota das medidas de isolamento, o Brasil ainda enfrenta um cenário com vacinação lenta e incerta e a circulação de novas variantes do vírus potencialmente mais contagiosas e fatais.

No Estado do Rio, a ocupação das UTIs para covid-19 está em 66% e é uma das baixas do Sudeste. Na capital Rio de Janeiro, porém, a ocupação de toda a rede SUS já ultrapassou os 75% —nas unidades próprias do município chega a 88%. Ainda assim, o prefeito Eduardo Paes foi pouco duro nas medidas decretadas na quinta-feira, 4 de março. Entre elas, está a proibição de permanência de pessoas em vias e áreas públicas das 23h às 5h. Também foi decretado que bares, lanchonetes e restaurantes devem fechar, para atendimento presencial, a partir das 17h. Esses estabelecimentos só poderão funcionar das 6h às 17h, podendo atender a um número máximo de clientes correspondente a 40% de sua capacidade instalada.

Medidas similares a um toque de recolher tem sido a solução encontrada por governadores para evitar o lockdown. O Estado de São Paulo chegou a decretar o chamado “toque de restrições” entre 23h e 5h e ignorou a recomendação dos especialistas por medidas mais duras. Mas, na prática, o que mudou foi a adoção de um aumento na fiscalização de festas e aglomerações. Durou poucos dias. Na quarta-feira, o governador voltou a colocar o Estado em fase vermelha, o que significa que somente comércios e serviços essenciais poderão seguir funcionando a partir de sábado.

Na Bahia, onde a taxa de ocupação de leitos de UTI para covid-19 já superou 84%, o governador Rui Costa (PT) decretou um toque de recolher mais rígido até o dia 31 de março, de 20h às 5h. Durante esse período só será permitida a circulação nas vias públicas de pessoas procurando serviços de saúde ou farmácia. A urgência deverá ser comprovada. Na região metropolitana de Salvador, onde a situação é mais grave, somente os serviços essenciais estão autorizados a funcionar. A circulação de transporte público também foi suspensa entre 20h30 e 5h, até pelo menos 8 de março.

Na colapso já instalado ou que se avizinha, o pesadelo do gestores é que a falta de leitos afetará todos os atendimentos, não apenas dos de pacientes com covid-19. “Em um cenário catastrófico, uma pessoa que precisar de um hospital não será atendida. No Sírio-Libanês, estamos batalhando para manter os leitos destinados aos pacientes cardiopatas e oncológicos”, conta Felipe Duarte, gerente de práticas médicas do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, um dos principais da rede privada brasileira.

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